Esse artigo foi originalmente publicado por Pedro Lauria na revista Esferas da Universidade Católica de Brasília (UCB) e pode ser acessado clicando aqui.

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Resumo

O suburbanismo fantástico é um subgênero definido por vincular a maturação do protagonista à jornada do herói das obras de fantasia – marcada por uma perspectiva branca e androcêntrica. Por isso, se mostra importante quando Bia, a protagonista de Mate-me por Favor subverte os elementos costumeiros do subgênero. Neste artigo, a compararemos com o clássico do suburbanismo fantástico, Conta Comigo, com intuito de compreender suas contribuições para o subgênero.

Palavras-chave: Suburbanismo Fantástico. Narrativa. Estudos de Gênero. Jornada do Herói. Androcentrismo

1. Introdução


O presente artigo se debruça sobre a afirmação de Angus McFadzean de que o suburbanismo fantástico seja um subgênero cinematográfico que privilegie homens, mais especificamente brancos, cis, de classe média e heterossexuais (2019, p.53). Não que ele esteja equivocado em fazer tal pontuação: durante toda a década de 1980 e 1990, são praticamente inexistentes os protagonistas do subgênero que não se encaixem neste caracterização. No entanto, desde o ciclo que se inicia nos anos 2010, tal característica parece estar sendo cada vez mais contestada pelas novas obras do subgênero, o que acaba por repercutir na sintaxe do próprio suburbanismo fantástico.

Antes, porém, façamos alguns esclarecimentos conceituais. Concebido faz poucos anos, o suburbanismo fantástico é um subgênero cinematográfico que foi categorizado pela primeira vez por Angus McFadzean (2017; 2019) se utilizando da conceituação semântico/sintática de Altman (1984; 2000). Eles englobam um conjunto de filmes Hollywoodianos que começam a aparecer na década de 1980 como E.T. – O Extraterrestre (E.T. – The Extraterrestrial, Steven Spielberg, 1982), Gremlins (Joe Dante, 1984), De Volta para o Futuro (Back to the Future, Robert Zemeckis, 1985), Os Goonies (The Goonies, Richard Donner, 1985) e Esqueceram de Mim (Home Alone, Cris Columbus, 1990).

 Segundo McFadzean (2017; 2019) semanticamente o subgênero é marcado por um amálgama dos elementos vinculados ao cotidiano de classe média e de eventos  fantásticos que causam uma disrupção no ambiente em que vive o protagonista (normalmente o subúrbio). Sintaticamente a obra vincula a jornada do herói, típica do gênero de fantasia, à narrativa de maturação do protagonista, típica dos coming of age dramas (os dramas de formação). Os coming of age dramas são marcados pela centralidade narrativa do processo de amadurecimento juvenil e dar foco aos fatos que impactem nesta maturação (SANTOS, 2016).

Este imbricamento entre estes romances de formação com a jornada do herói clássica, no entanto, cria percepções peculiares ao subgênero. Por exemplo, sustentam a noção de que no suburbanismo fantástico é “mais fácil salvar o mundo do que expressar seus sentimentos ou pedir desculpas” (McFADZEAN, 2019, p.15). Em outras palavras, nestas obras amadurecer normalmente exige um ato heróico, físico e de coragem. Assim, no final da trama, a resolução do evento fantástico e a retomada do status quo estaria inerentemente ligada a maturação do personagem, tal qual fundamentada na jornada do herói descrita por Joseph Campbell em O Poder do Mito (2009) – já discutida pela crítica feminista como proposta de forma androcêntrica (MURDOCK, 1990), ou seja, pela perspectiva masculina.

No entanto, se uma das marcas da jornada do herói clássica é justamente sua trajetória para além do mundo conhecido, rumo as aventuras dos mistérios não encontrados, o suburbanismo fantástico traz em suas narrativas uma inversão bastante importante. Nele, é o extraordinário que vem até ao protagonista, causando uma disrupção em seu lar – seja uma viagem no tempo, um alienígena, gremlins ou assaltantes. Jewett e Lawrence (2002) descrevem essa construção narrativa como uma das variações pertencentes ao monomito estadunidense:

Uma comunidade em um paraíso harmônico é ameaçada pelo mal: instituições normais falham em conter a ameaça. Um herói altruísta emerge para renunciar as tentações e implementar sua tarefa redentora. Ajudado pelo destino, sua vitória decisiva restaura a comunidade para sua condição paradisíaca. Então, o herói retorna ao obscurecimento.(LAWRENCE & JEWETT, 2002, p.215) (Tradução nossa)[1]

Tal perspectiva, traz, por sua vez, um certo caráter reacionário ao subgênero – uma vez que suas narrativas não vêm de um protagonista impelido a fazer uma transformação na sociedade, mas a retorná-la ao seu status quo. Tais interesses restitutivos, por sua vez, estão intimamente ligados ao próprio recorte social que o subgênero representa: subúrbios de classe média, marcados pelo elitismo econômico e o exclusivismo étnico-racial existentes desde o boom (sub)urbanizatório da década de 1950, arraigados na ideia do “Sonho Americano” (COONTZ, 2000). Isso, por sua vez, também se estende ao gênero de seu protagonista, uma vez que privilegiado pela constituição de uma sociedade machista e patriarcal, sua jornada passa a ser da retomada de uma normalidade que (re)assegura seus privilégios de classe e gênero.

O suburbanismo fantástico foi praticamente esquecido a partir da segunda metade da década de 1990, sendo substituído por gêneros de fantasia e de super-herói. Seu retorno expressivo se dá na década de 2010 – ao que Angus McFadzean denomina como um ciclo “reflexivo” (que repensa a fórmula e seus clássicos), marcado por trabalhos como Super 8 (J.J.Abrams, 2011), Stranger Things (Irmãos Duffer, Netflix, 2016-) e It – Capítulo 1 e 2 (It – Chapter 1 and 2, Andy Muschiett, 2017, 2019). O Brasil também colaborou com o subgênero em trabalhos como Eu e Meu Guarda-Chuva (Toni Vanzolini, 2010), O Escaravelho do Diabo (Carlo Milani, 2016) e Turma da Mônica – Laços (Daniel Resende, 2019). 

Mais interessante para nós, no entanto, foi que esse novo ciclo representou a entrada de novos corpos protagonizando esse subgênero como mulheres, negros, latinos e LGBTQIA+*. Destaco obras como Ataque ao Bloco (Attack the Block, Joe Cornish, 2011), A Gente se Vê Ontem (See You Yesterday, Stefon Bristol, 2019), Vampiros vs. The Bronx (Vampires vs. The Bronx, Osmany Rodriguez, 2020), o remake de A Convenção das Bruxas (The Witches, Robert Zemeckis, 2020), Manual de Caça a Monstros (A Babysitter’s Guide to Monster Hunting, Rachel Talaly, 2020) e Fear Street: 1994 (Leigh Janiak, 2021).

Tal percepção contemporânea nos leva a questionar se tais características vinculadas a masculinidade e ao androcentrismo observadas por McFadzean são constitutivas do próprio subgênero ou são marcas de seu primeiro ciclo (1982-2000). Ou seja, atreladas a conjuntura do entretenimento reaganista da década de 1980 – período em que o subgênero se fundamentou. Esta conjuntura foi marcada pela produção de obras high concept [2] com elementos visuais chamativos e que gerassem a “empolgação” de se ir ao cinema e criticados como parte do “entretenimento escapista” da Era Reagan (Ehrman, 2005; Troy, 2005). Segundo Britton, gerando “produtos tão maravilhosos quanto insignificantes” (2009, p.101). Robin Wood vai ser categórico em afirmar essa repetição de estruturas e elementos tem como objetivo  “diminuir e desarmar todos os movimentos sociais que ganhavam ímpeto na década de 1970: o feminismo  radical, a militância negra, a liberação LGBTQIA+ e os ataques ao patriarcado”  (1996, p.204). Em resumo, ao darem primazia à repetição da figura do homem branco heterossexual como herói, não era dado espaço a representatividade e subjetividade de outros corpos que lutavam por espaço.

Esta perspectiva de que o androcentrismo e a branquitude do subgênero seja advinda de uma conjuntura que tenha coincidido com a gênese do suburbanismo fantástico (e não seja inerente ou constitutivo do mesmo), exige que agora seja feita uma análise das novas propostas sintáticas e narrativas trazidas pelos filmes contemporâneos. Com esse objetivo é que neste artigo propomos uma análise sintática e narrativa de Mate-Me Por Favor (Anita da Rocha Silveira, 2015), uma vez que esta se apresenta como uma das mais interessantes obras para se discutir possibilidades e perspectivas do suburbanismo fantástico.

O filme de estreia de Anita da Rocha Silveira conta a história de amadurecimento de jovens colegiais, enquanto corpos surgem mortos e violentados nos matagais da Barra da Tijuca. Bia e suas amigas começam a desenvolver um certo fascínio pela morte e pelos mortos, indo atrás de seus corpos e acompanhando as notícias sobre os crimes.  Ao trazer um protagonismo completamente feminino, a obra apresenta uma narrativa de amadurecimento bastante divergente do que a que foi apresentada e iconizada nas primeiras décadas do suburbanismo fantástico. Além disso, o filme também subverte a forma como o “Outro” (o fantástico) é tratado no subgênero e traz uma crítica bastante contundente à classe média e a emulação desse “Sonho Americano”.

Para ressaltar as inovações do filme de Anita para o subgênero e explicitar as subversões representadas por sua heroína, faremos uso da análise comparativa a partir de  uma das mais famosas obras do suburbanismo fantástico: Conta Comigo (Stand By Me, Rob Reiner, 1986), com os quais Mate-me por Favor guarda proximidades narrativas e semânticas. A obra oitentista também conta a história de quatro amigos e seu fascínio pela morte, fato que os leva a sairem pelos bosques próximos à sua cidade natal em busca de um corpo desaparecido.

2. Duas Diferentes Jornadas

Além de seus (sub)gêneros e temas, a primeira semelhança que nos chama a atenção entre Conta Comigo e Mate-me por Favor é a forma como estão organizados seus protagonistas. Ambos são formados por CCPs (Collective Children Protagonists ou Grupos de Jovens Protagonistas) de quatro jovens. No entanto, com uma fundamental divergência de gênero: enquanto Conta Comigo acompanha a jornada de quatros garotos, em Mate-Me Por Favor, as protagonistas são quatro meninas.

Como parte inerente do próprio suburbanismo fantástico, esses jovens irão seguir uma jornada  conjunta que vai implicar em seu amadurecimento (McFADZEAN, 2019) a partir da superação dos obstáculos apresentados.  Esta superação será feita através de um processo acelerado do desenvolvimento de capacidades específicas, ao qual Ashley Carranza vai se referir a partir da teoria da autodeterminação (2018, p.15). Segundo ela, a teoria da auto-determinação seria composta pelo desenvolvimento de três necessidades psicológicas básicas de todo o ser humano: competência (a necessidade de ser eficiente dentro de seu  próprio ambiente), autonomia (a necessidade do controle de sua própria vida) e empatia (a necessidade de ter relacionamentos com outras pessoas).

Em ambas as tramas, os CCPs são movidos pela mesma força que os ameaça: a curiosidade e o fascínio pela morte. Enquanto o grupo masculino, liderado por Gordie, planeja uma jornada nos bosques para recuperar o corpo desaparecido de um jovem acidentado, as meninas, lideradas por Bia, rodeiam os terrenos baldios da Barra da Tijuca, atrás de possíveis vítimas de um assassino (figura 1). Seus movimentos estão intrinsicamente ligados com a falta do zelo familiar e com a ineficiência do trabalho das autoridades. Ou seja, a jornada de ambos os grupos só existe porque os adultos falharam em mantê-los protegidos. Como dito por Carranza, “em um mundo onde jovens são selvagemente assassinados e seus pais são incapazes de fazer algo a respeito, eles aprendem a contar uma com a outra para se proteger e proteger os outros” (2018, p.15).

Figura 1 – As quatro protagonistas de Mate-me Por Favor se encontram em um terreno baldio. (Frame do filme)

Alguns contrapontos devem ser traçados quanto a estrutura narrativa sob a qual se reveste a jornada dos protagonistas de cada filme. Enquanto no filme estadunidense o fantástico leva os personagens a “deixarem seu mundo conhecido”, na obra nacional, Bia e suas amigas optam por uma abordagem intermitente, fazendo diversas expedições aos terrenos baldios da Barra da Tijuca. De tal maneira, é possível encontrar uma natureza cíclica em suas jornadas: ir até as áreas ermas do bairro da Zona Oeste se torna uma espécie de ritual. Isto, por si só, já se configura como uma subversão da estrutura clássica do monomito estadunidense impregnada no subgênero: não se trata de uma jornada linear com um fim claro. De tal forma, implica-se que mesmo uma resolução daquela situação (a prisão do assassino) não irá retomar o status quo das jovens de Mate-me por Favor – afinal, aquele evento já terá feito parte das personagens e daquele mundo.

Se Angus McFadzean (2019) define que o suburbanismo fantástico é marcado por vincular o amadurecimento do(s) protagonista(s) com a resolução do conflito, em Mate-me por Favor esta correlação não é tão vinculativa. O conflito também o é intermitente, e, por isso, não pode ser resolvido de uma vez por todas. Logo, não há possibilidade para a sacramentação de um “final feliz” (no que se diz a resolução do conflito) tal qual é preconizado pelo cinema Hollywoodiano clássico.

Edgar Morin (2011) vai se aprofundar em como essa “cultura do final feliz” encontrada no cinema de massas, da qual Hollywood é o maior expoente, rompe com a tradição milenar da tragédia grega e ambiciona por um processo de libertação psíquica do espectador que só pode se dar em um universo idealizado (e logo, socialmente inconcebível). Ressalto como tal percepção está bastante alinhada a crítica de Andrew Britton ao próprio entretenimento reaganista. O autor ressalta que as obras dessa conjuntura buscavam ser uma antítese para os problemas mundanos e que faziam questão de demonstrar não guardar relação séria com a vida real (BRITTON, 2009, p.101).

Ao olharmos novamente para Conta Comigo, estes aspectos encontrados em Mate-me por Favor se mostram ainda mais representativos. Isto porque o filme de Rob Reiner, apesar de se apresentar como uma crítica contumaz à sociedade estadunidense e ao “Sonho Americano”, em uma leitura mais cuidadosa apresenta elementos que na verdade reforçam os valores hegemônicos dessa sociedade. Por exemplo, em Conta Comigo é inequívoco que os jovens incorporem o espírito dos colonizadores e se lancem em uma jornada para desbravar o desconhecido (tanto selvagem, quanto da morte e do crescimento). Tal narrativa está completamente vinculada à noção do individualismo robusto, valor tido como essência do espírito estadunidense segundo a retórica hegemônica. Este conceito foi cunhado sob o nome de “American Individualism” por Herbert Hoover, que viria a se tornar presidente em 1929.

Nosso individualismo [estadunidense] difere de todos os outros porque abraça grandes ideais: enquanto construímos nossa sociedade sobre a realização do indivíduo, devemos salvaguardar para cada indivíduo uma igualdade de oportunidade de assumir essa posição na comunidade para a qual sua inteligência, caráter, habilidade e ambição dão-lhe o direito; que mantivemos a solução social livre de camadas de classes congeladas; que devemos estimular o esforço de cada indivíduo para a realização; que, por meio de um senso crescente de responsabilidade e compreensão, devemos auxiliá-lo nessa conquista; enquanto ele, por sua vez, deve enfrentar a roda da competição. (HOOVER, 1922, p.3) (Tradução nossa)[3]

Vale lembrar que Conta Comigo é narrado na forma de um relato – Gordie, adulto, compartilha as experiências e dificuldades narradas no filme foram essenciais na formação de seu caráter. Segundo Eric Lars Olson (2011, p.30) os protagonistas de Conta Comigo “são úteis aos seus colegas, não por terem percorrido a estrada das provações antes, mas por ser encontrar naquela estrada ao mesmo tempo que eles, física e emocionalmente”. Assim, o pesquisador sugere uma visão utilitarista da amizade, aos moldes da retórica individualista. Ou seja, por mais que os laços de amizade sejam verdadeiros, sua duração é condicionada – válida somente enquanto os personagens tiverem trajetórias parecidas.

Esta perspectiva se torna ainda mais evidente ao compararmos as condições de Gordie com a de seus amigos de infância. Gordie é retratado como um pai suburbano, de classe média alta, próximo de seus filhos – explicitando que fez as pazes com os valores da classe média estadunidense e assimilou seus principais predicados. (McFADZEAN, 2019). O mesmo não acontece com seus amigos: Vern nunca ascendeu de classe, Teddy foi preso e Chris, morto. No entanto, ao invés desta flagrante desigualdade causar inconformidade em Gordie, este parece mais preocupado com a sua nostalgia pela infância. De acordo com suas próprias palavras  “é normal que cada um se afaste, mas restam as lembranças”. Em nenhum momento Gordie aparenta estar incomodado com a estrutura de classes que impôs aquele grau de violência aos seus amigos.

Talvez o pior caso seja o de Chris. Desde o início do filme o jovem é retratado diante de um retórica de determinismo social, ao ponto Gordie chega a dizer que “a família de Chris não prestava, e nós sabíamos que ele seria igual”. E mesmo que a obra apresente como traço redentor desse personagem a capacidade de abdicar da mesma violência que lhe foi infligida (LAWRENCE & JEWETT, 2002, p.89), seu destino é trágico: ele morre esfaqueado depois de tentar separar a briga entre dois homens em um bar. A reação de Gordie ao saber do ocorrido, por sua vez, é voltada para a reafirmação de seus próprios valores: o homem apenas relembra de sua infância e se compromete a ser um pai melhor para seus filhos. Dentro de uma nação forjada no conceito do individualismo robusto, Gordie supostamente teve a “autonomia” e “competência” para se tornar parte daquela sociedade, a mesma que virou as costas para seus amigos.

Essa “vitória” do individualismo robusto não acontece em Mate-me por Favor. O filme brasileiro não sugere que a protagonista tenha assimilado os predicados da sociedade que lhe violenta, ou mesmo superado as dificuldades que lhe foram impostas. Tal concepção contrapõe as próprias necessidades do subgênero e do cinema narrativo clássico em marcar o final de uma jornada a partir da resolução de um conflito. Ou melhor, de um conflito externo. Se a fórmula clássica do suburbanismo fantástico propõe que precisa haver a resolução do fantástico para o crescimento pessoal do protagonista, no filme brasileiro a maturação acontece independente disso. Mesmo que as autoridades sejam ineptas para prender o assassino, a obra não propõe uma narrativa de que uma jovem será capaz de o fazê-lo. Ser herói, na concepção da obra, não é resolver magicamente a violência, mas sobreviver a ela. E não no sentido literal como é feito em alguns filmes de terror (gênero com o qual a obra compartilha alguns elementos semânticos), mas no sentido pessoal: as mortes não brutalizam ou dessensibilizam Bia. Ao contrário, os assassinatos reforçam sua identificação para com as adolescentes mortas.

Nesse sentido, é impossível não vincular o gênero das protagonistas de Mate-me Por Favor da forma como elas abordam os perigos da trama. A obra desde o início reforça que o amadurecimento feminino passa pela lógica de sobreviver à violência causada pela própria conjuntura social machista, patriarcal e heteronormativa. Isto fica bastante explícito desde as cenas iniciais, como na cena que a personagem Michelle relata um pesadelo para suas amigas no qual é estuprada e morta.

A luta por sobreviver à essa condição de violência é refletida em uma sequência do terceiro ato, quando vemos o rosto das quatro personagens principais marcadas por machucados e/ou doenças (figura 2). Crescer, principalmente como mulher, se apresenta como a superação de diversas violências – literais e figurativas. Neste sentido, faz se necessário remeter a máxima trabalhada por Barbara Hudson de que a adolescência é um constructo masculino. Isso significa que existem conflitos inerentes a ser uma menina adolescente. Em outras palavras, a performatividade de jovens mulheres jovens fica sob o escrutínio social de serem acusadas de falta de maturidade (pois são jovens) como também de feminilidade (pois a adolescência estaria ligada à masculinidade) (HUDSON, 1991, p.35).

Figura 2 – Sequência que mostra o rosto machucado das quatro protagonistas de Mate-me por Favor. (Frame do filme)

Assim, a posição de Anita da Rocha Silveira em colocar suas personagens realizando práticas esportivas (o Handebol) e exibindo características como a competitividade, a sexualidade ativa e a disputa física – tidas pelo “inconsciente do patriarcado” como masculinas (DE LAURETIS, 1987, p.1), trata-se de uma restituição do direito de performarem como tal. E mais do que isso, reivindica o direito de suas personagens de fazer parte de um subgênero cuja sintaxe principal é a da maturação e que, até então, era atrelada à  masculinidade pelo cinema hegemônico.

Isto, é claro, não significa que ser um menino de classe média/baixa, em uma cidade pequena no início da década de 1960, seja fácil. Pelo contrário, Conta Comigo explicita problemas como a questão do lar abusivo, da masculinidade tóxica e da violência que ameaça os corpos desses jovens. Porém, os causadores dessas dores também são em sua maioria outros homens (OLSON, 2011, p.29) e que o filme faz questão de dissociar da sociedade estadunidense como um todo. Afinal, lembremos, que para Gordie o “Sonho Americano” foi alcançado ao final da trama. Assim, a obra se abdica de fazer uma crítica ao projeto de sociedade estadunidense, mas as direciona à suas instituições e autoridades. Este era o mesmo discurso reverberado pela retórica liberal de Reagan, o que coloca Conta Comigo (e o suburbanismo fantástico, de forma geral) ainda mais posicionado dentro da conjuntura do entretenimento reaganista.

A ponto de contextualização, Regan e seu governo eram marcados por uma perspectiva profundamente liberal e individualista da sociedade estadunidense. Em seu governo, os programas sociais foram acusados de serem “engenharias sociais” que falharam. (MARCUS, 2004, p.53). Estes programas eram legados da “The Great Society” de Lyndon Jonhson (presidente de 1963-1969), que trazia uma perspectiva sociológica para a pobreza (TROY, 2005, p.89). No lugar destes foi imposta a doutrina da “Lei e Ordem” que atribuía ao crime uma perspectiva mais individual e familiar. Ou seja, a violência não era mais condicionada por uma projeto de sociedade desigual, mas vinculada a famílias colapsadas e/ou a própria “natureza” do individuo.  Nos Estados Unidos de Reagan o discurso era de que a principal forma de ascensão social seria partir da réplica dos valores tradicionais do país: iniciativa pessoal e trabalho duro. Em outras palavras, o individualismo robusto. O crime e a probreza, então, seria uma consequência daqueles que falhassem em performá-lo, embora sempre houvesse uma “chance” para quem “se esforçasse” e desse “a volta por cima” – predicados inerentes ao discurso meritrocrático liberal.

Mate-me por Favor traz uma perspectiva bem mais explícita e crítica do papel da sociedade na formação desses jovens. Vale lembrar que a obra foi lançada em 2015, após seguidos governos de esquerda no Brasil, que, independente de problemas e críticas, tinha os programas sociais como principal mote de validação. Essa conjuntura nos auxilia a entender o olhar mais sensível para o impacto da sociedade em seus personagens. Então, embora a ausência parental em Mate-me por Favor seja explícita (não sabemos do pai de Bia e sua mãe é apenas citada através do dinheiro que deixa para seus filhos) – a sociedade como um todo parece falhar com aqueles jovens. Na escola, por exemplo, é na frieza e impessoalidade de um auto-falante que é avisado que um aluno foi assassinado. A igreja, mais preocupada com o espetáculo, se mostra incapaz de trazer algum conforto para as ansiedades juvenis. A Barra da Tijuca parece inabitada e apresenta como locais de circulação amplos terrenos não urbanizados, ruas escuras com luzes desfocadas, carros passando em alta velocidade (XAVIER, 2020, p.7): o retrato de um canteiro de obras abandonado, em um claramente problemático Projeto Olímpico. O poder público, por sua vez, é incapaz de proteger os jovens de um assassino. Assim, ao final, quando surgem jovens pregando cartazes com os dizeres “Quem vai pagar por isso”, estes mais parecem adereçados para toda a sociedade do que para uma figura específica.

E se tais perspectivas da sociedade são profundamente destoantes entre as duas obras, também o é, a forma como os personagens de Conta Comigo e Mate-Me Por Favor se posicionam frente a ela. Isto se dá desde o mote inicial do filme. Na obra estadunidense, por exemplo, o grupo de meninos decide procurar pelo corpo do adolescente pela fama que isto lhes traria, reproduzindo a forma mais explícita desse individualismo robusto que busca os méritos pessoais. Chris chega a dizer “Se acharmos o corpo, vamos sair no jornal” e Teddy complementa “Ou na TV. Seremos heróis”. No fim, o caráter ético dos protagonistas vem justamente de abrir mão da fama que a descoberta do corpo lhes traria. Como vimos, a retribuição para aqueles jovens não se dá pelo reconhecimento de suas virtudes e de seus atos heróicos, mas para aqueles que conseguirem “fazer as pazes” com a sociedade estadunidense e seus valores – ou seja, Gordie.

No caso de Mate-me por Favor, esse intuito original por reconhecimento inexiste. O que movimenta a busca das protagonistas por corpos se trata de um misto de curiosidade e identificação. Por isso, o amadurecimento de Bia se dá de forma completamente diferente do que em Conta Comigo. Primeiramente, essa maturação ocorre a partir do desenvolvimento da sororidade e empatia com o “Outro”. No caso, com outras mulheres afligidas pela violência, como quando Bia conforta uma mulher em seus últimos momentos de vida (figura 3).

Figura 3 – Bia, protagonista de Mate-me por Favor, conforta uma mulher violentada em seus momentos finais. (Frame do filme)

Porém, o amadurecimento também advém pela identificação com aqueles mortos. Como dito por Amanda D. em sua análise na revista Verberenas, “A cada morte anunciada, as meninas se imaginam morrendo. A cada morte no terreno baldio, vazio entre os prédios em uma cidade rarefeita, elas morriam um pouco” (D., 2015). O ápice desse sentimento se dá na cena final, quando Bia dorme ao relento e se torna um corpo como tantos outros largados em matagais da Barra da Tijuca. Esse encerramento poético e fantasmagórico em que ela se levanta junto com os corpos (figura 4), diz mais da morte metafórica ao qual ela e outros adolescentes sofrem naquela sociedade, do que da morte literal, nas mãos de um assassino. O desenvolvimento da identificação dela com a situação daquelas jovens, também é representado pelo acolhimento que ela dá à sua amiga, Mariana, após uma briga entre as duas. O pedido de desculpas, quase inexistente no suburbanismo fantástico, é o traço redentor da heroína – que não precisa evitar os assassinatos ou achar o assassino para causar um impacto positivo naquele mundo.

Figura 4 – Bia se levanta junto aos corpos de jovens e atravessam os terrenos baldios. (Frame do filme)

Esse ato tão simples – se identificar, pedir desculpas e acolher – é completamente revolucionário em um subgênero marcado pela fantasia de romantizar o heroísmo físico. Tal qual Olson (2011) bem resume com o título de sua tese “Grandes Expectativas”, o suburbanismo fantástico é marcado por propor que cabe a crianças e adolescentes resolverem os problemas de seu mundo e fazer as pazes com os valores daquela sociedade. A expectativa que recai sobre eles é parte do condicionamento de uma sociedade que utiliza a retórica da autonomia e competência como subterfúgio para justificar a falta de cuidado. Em Mate-me por Favor, a jornada de Bia se faz heróica ao ressaltar a escassez e carência da empatia: uma das necessidades propostas pela teoria da autodeterminação (CARRANZA, 2018). Em um subgênero regido pela disrupção causada pelo Outro, Bia traz as perspectivas da superação da necropolítica presente no (neo)liberalismo em que “o Outro é visto não como semelhante, mas como objeto ameaçador, do qual é preciso proteger-se ou destruir” (MBEMBE, 2014, p.26).

Ao exercer o papel crítico, e estipulando que não existe uma resolução do conflito possível em sua realidade – Bia vai de encontro a epítome do entretenimento reaganista: não existe um sentimento redentor de que a sociedade está ou ficará em ordem, quando o espectador sai do cinema. Enquanto no final de Conta Comigo, Gordie, já adulto, olha para a condição paradisíaca da infância e vai brincar com seus filhos (OLSON, 2011, p.31), replicando os valores daquela sociedade, Bia segue outro caminho: ela se une aos corpos marginalizados.

Vale lembrar que o suburbanismo fantástico é, sobretudo, um subgênero de crítica e/ou reconciliação com os valores da classe média. Tanto o grupo liderado por Bia, quanto aquele liderado por Gordie, sofrem com uma comunidade que se fecha em seus próprios problemas. Nesse sentido, os condomínios da Barra da Tijuca tão marcantes na geografia de Mate-me por Favor são uma espécie de monumento a esses anseios. Seus portões, muros e cancelas são símbolos do isolamento de classe. Porém, destaca-se a divergências das posturas que os filmes tem com a classe média e com a sociedade capitalista. Enquanto em Conta Comigo, Gordie se torna complacente com o fato dos amigos se separarem e seguirem trajetórias individuais (mesmo que isso signifique sofrerem com a violência), Bia não consegue abandonar o “Outro” – seja ele quem for. E como Glênis Cardoso resume de forma didática, em uma sociedade patriarcal “qualquer pessoa que não seja um homem cis hétero branco é visto como o “Outro” (2018).

Considerações

Antes de mais nada é importante ressaltar que em nenhum momento deste trabalho procurou se fazer uma comparação qualitativa sobre ambas as obras – respeitando o lugar histórico de Conta Comigo como uma das mais tocantes obras sobre adolescência, manifesta na sua aclamação pela crítica e pelo público (o filme figura no top 250 de melhores filmes do Imdb[1]). Justamente por esse impacto em suas audiências que nos sentimos a vontade de o escolhermos como contraponto à obra brasileira. Assim, buscamos ressaltar pontos na obra, que ao mesmo tempo mitificam o papel do individuo, não fazem as devidas críticas à classe média e a sociedade, reforçando certas visões de mundo.

Nesse sentido, ressalta-se que seja uma obra de fora do eixo hegemônico, escrita e dirigida por uma mulher, que apresenta outras possibilidades de protagonismo. A jornada de Bia em Mate-me Por Favor reforça que não cabe ao adolescente salvar o mundo das antigas gerações. As “grandes expectativas” postas sobre os jovens protagonistas dessas obras, e romantizadas a partir do melodrama heróico, auxilia na construção da visão de uma sociedade que deseja se isolar de críticas, usando a retórica da autonomia e da meritocracia. O olhar crítico de Mate-me por Favor para a classe média vai de encontro à premissa básica do entretenimento reaganista, afastando características até então tidas como intrínsecas ao suburbanismo fantástico (McFADZEAN, 2019).

Além disso, a obra de Anita Rocha da Silveira ilumina as potencialidades no ingresso de novos corpos de um subgênero marcado pelo androcentrismo – primordialmente fundamentado na sintaxe de maturação e na jornada do herói clássico descrita por Campbell (2009). E se Campbell disse que “a mulher não precisa de jornada na tradição mitológica, pois ela já é completa”, este duplo padrão já foi contestado pela crítica feminista, iconizada por Maureen Murdock – que reivindica o direito da mulher em ter sua própria jornada (1990, p.26). Assim, exige-se também o direito dela protagonizar o suburbanismo fantástico a partir de suas próprias narrativas e elementos sintáticos.

O englobamento de novos protagonistas e perspectivas, acompanhada também por outras produções suburbanistas mais contemporâneas, podem dar a profundidade narrativa necessária para que o subgênero não caia novamente no esquecimento. Mais do que isso, também podem servir de novos paradigmas críticos para as gerações mais recentes. Lembramos que mulheres e corpos não hegemônicos nascidos na década de 1970 e 1980, cresceram sem a possibilidade de identificação com narrativas de todo um subgênero audiovisual. E mesmo se tentassem se identificar, ainda se tratavam de narrativas que lhes cobravam salvar o mundo e assimilar os valores de uma sociedade patriarcal. Nesse sentido, a ressignificação de elementos tidos como inerentes no suburbanismo fantástico se faz mais do que necessária. É dever do audiovisual e, da sociedade que ele reflete, que este corpos exerçam seu direito ao protagonismo.

[1] No original: “A community in a harmonious paradise is threatened by evil; normal institutions fail to contend with this threat; a selfless superhero emerges to renounce temptations and carry out the redemptive task; aided by fate, his decisive victory restores the community to its paradisiacal condition; the superhero then recedes into obscurity.”

[2] Filmes que se pautam em narrativas fáceis de serem explicadas, normalmente focadas em chamar a atenção de uma larga audiência pautada em sua premissa.

[3] No original: “Our individualism differs from all others because it embraces these great ideals: that while we build our society upon the attainment of the individual, we shall safeguard to every individual an equality of opportunity to take that position in the community to which his intelligence, character, ability, and ambition entitle him; that we keep the social solution free from frozen strata of classes; that we shall stimulate effort of each individual to achievement; that through an enlarging sense of responsibility and understanding we shall assist him to this attainment; while he in turn must stand up to the emery wheel of competition.”

 

REFERÊNCIAS

 

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[1] Imdb.com – Acesso em 05/04/2021

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