O presente trabalho foi apresentado por Pedro Lauria no XXIV Encontro SOCINE na sessão: CI Figuras do monstro e cinema fantástico: abordagens comparatistas.
O texto original se encontra nos Anais da SOCINE 2021:
https://www.socine.org/wp-content/uploads/anais/AnaisDeTextosCompletos2021(XXIV).pdf
This article has an english version: https://oca.observatorio.uff.br/?p=2475
Resumo:
O presente trabalho investiga como o suburbanismo fantástico vêm sendo produzido no Brasil a partir da análise de três filmes: Mate-me Por Favor (Anita Rocha da Silveira, 2015), O Escaravelho do Diabo (Carlo Milani, 2016) e Turma da Mônica – Laços (Daniel Resende, 2019). O faremos a partir do comparativo semântico, sintático e narrativo dessas obras, buscando ressaltar o potencial de nossas especificidades e brasilidades nesse subgênero de origem tão arraigada no cinema estadunidense.
Palavras-chave:
Suburbanismo Fantástico; Cinema Brasileiro; Gênero Cinematográfico; Classe Média
Introdução
O suburbanismo fantástico é um subgênero cinematográfico conceituado por Angus McFadzean. Segundo ele, se trata de:
(…) um conjunto de filmes Hollywoodianos que começaram a aparecer nos anos 1980, onde crianças e adolescentes que vivem no subúrbio são chamados para confrontar uma força fantástica e disruptiva (…) São filmes que emergiram de obras focadas no público adulto, melodramas suburbanos, e filmes e programas de horror, fantasia e aventura, clássicos dos anos 1950 (…). Comumente adereçados como filmes de crianças ou filmes “família”, sendo parte-chaves da infância do fim da geração X (1965-1980) e de toda geração millenial (1981-1996). (McFADZEAN, 2019, p.1)
Se tratam de narrativas geralmente ambientadas nos subúrbios estadunidenses de classe média e que contemplam filmes com protagonistas jovens que se envolvem em aventuras iniciadas por elementos extraordinários (aqui podendo ser qualquer coisa fora do cotidiano suburbano, sejam alienígenas ou ladrões de residência). Sintaticamente, a obra vincula a narrativa de amadurecimento típica dos coming of age dramas com o melodrama do herói, advinda do gênero de fantasia. Isto é feito através da sincronização entre a maturação do protagonista e o desfecho da aventura, normalmente ligado a resolução da disrupção causada pelo elemento extraordinário e o consequente retorno ao status quo. Exemplos clássicos do suburbanismo fantástico são E.T. – O Extraterrestre (E.T. – The Extraterrestrial, Steven Spielberg, 1982), Os Goonies (The Goonies, Richard Donner, 1985), De Volta para o Futuro (Back to the Future, Robert Zemeckis, 1985), Esqueceram de Mim (Home Alone, Chris Columbus, 1990) e Jumanji (Joe Johnston, 1995).
McFadzean sublinha que tais obras acumulam protagonistas masculinos, brancos e heterossexuais: dos mais de 50 filmes analisados por ele do período de 1982 até 1999, apenas três tem mulheres protagonistas. São o caso dos filmes Short Circuit (Short Circuit, John Badham, 1986), Os Fantasmas se Divertem (Beetlejuice, Tim Burton, 1988) e Gasparzinho (Casper, Brad Siberling, 1995). Nota-se que em todos eles, a protagonista divide tempo de tela (e protagonismo) com uma figura fantástica masculinizada. No caso de personagens negros é ainda mais discrepante: apenas um filme dentre os analisados. Se trata de As Criaturas Atrás das Paredes (The People Under the Stairs, Wes Craven, 1991), cujo protagonista é um garoto negro que mora na periferia urbana, mas que se aventura na casa dos sinistros locadores suburbanos.
O suburbanismo fantástico teve uma retomada na última década, com uma perspectiva mais nostálgica (principalmente dos anos 1980) e reflexiva (McFADZEAN, 2019), marcada por obras como Super 8 (J.J. Abrahms, 2011), Stranger Things (Irmãos Duffer, Netflix, 2016-) e It – Capítulo 1 (It – Chapter One, Andy Muschietti, 2017). E, mesmo que essas obras façam apenas breves acenos à inclusão de corpos não-brancos, masculinos e heterossexuais em suas tramas, o subgênero vem nos últimos anos ganhando cada vez mais produções que contestam essa representação. São o caso de obras como A Gente se Vê Ontem (See You Yesterday, Stefon Bristol, 2019), Vampiros vs. The Bronx (Vampires vs. The Bronx, Osmany Rodrigues, 2020), A Convenção das Bruxas (The Witches Robert Zemeckis, 2020), Fear Street: 1994 (Leigh Janiak, 2021) que trazem homens e mulheres negras, latinas e/ou não heterossexuais para o protagonismo do suburbanismo fantástico.
Esse movimento, por sua vez, também expande as ambientações do subgênero para além dos subúrbios e small towns, incluindo as periferias urbanas como um cenário possível para as narrativas. Vale ressaltar que esta “saída do subúrbio” em nada afeta a taxação genérica do suburbanismo fantástico, uma vez que desde a década de 1980 algumas narrativas já apresentavam essa possibilidade como O Milagre veio do Espaço (*batteries not included, Matthew Robbins, 1987) e Esqueceram de Mim 2 (Home Alone 2, Chris Columbus, 1992) que se passam em Manhattan e De Volta para o Futuro 3 (Back to the Future 3, Robert Zemeckis, 1990) que se passa no velho oeste estadunidense.
É justamente essa possibilidade de transitar para ambientações além do subúrbio estadunidense que nos leva a pergunta do presente trabalho: como o Brasil reproduz estas narrativas? Quais são nossas possibilidades para contribuir com a evolução do subgênero? Para nos aprofundar nestes questionamentos iremos contrapor três obras do subgênero lançadas na última década, são elas: O Escaravelho do Diabo (Carlo Milani, 2016), Turma da Mônica – Laços (Daniel Resende, 2019) e Mate-me por Favor (Anita Rocha da Silveira, 2015). Elas serão a partir de suas contribuições semânticas e sintáticas, além de inovações narrativas, especificidades e peculiaridades, além da incorporação de corpos contra hegemônicos em suas tramas.
O Suburbanismo Fantástico Brasileiro
Antes de nos aprofundar nos filmes acima mencionados, se faz crucial destacar algumas proximidades históricas que o Brasil tem com o suburbanismo fantástico. Sublinho ela em pelo menos duas diferentes perspectivas. A primeira é relativa ao nosso histórico de sucesso com produções infanto-juvenis com elementos fantásticos, legado de nossa tradição audiovisual com o realismo mágico (YOUNG, 1995) dentre os quais as inúmeras adaptações do Sítio do Pica-Pau Amarelo certamente se destacam. A segunda é relativa ao nosso histórico de espectatorialidade, uma vez que toda uma geração millenial foi marcada pelas exibições de obras do suburbanismo fantástico na TV, dentro do que Santos define como “Filmes da Sessão da Tarde” (2004), nomenclatura dada devido ao programa vespertino da TV Globo em que estes filmes passavam durantes os anos 1980 e 1990.
É partindo da marca afetiva que este subgênero teve em toda uma geração, que se compreende o contexto das três obras destacadas: todas são dirigidas por millenials ou produzidas com intuito de atingir esse público. Dito isto, dentre as três obras destacadas, o primeiro ponto que chama a atenção é a localização temporal destas obras. Ao contrário do que se vê nas produções reflexivas da suburbanismo fantástico estadunidense, tanto O Escaravelho do Diabo quanto Mate-me Por Favor têm uma ambientação contemporânea. Isso significa que elas não colocam tanta ênfase na tecnostalgia analógica quanto obras passadas nos anos 1980 (que investem no walkman, nos walkie talkies, nos rádios e na TV de tubo). Segundo Campopiano, a tecnostalgia se dá por uma reminiscência ou desejo por uma tecnologia desatualizada (2014, p.75).
A exceção fica por conta de Turma da Mônica – Laços, que propõe uma perspectiva atemporal e abre mão de qualquer elemento de tecnologia digital (vale lembrar que os anos 1980 ficaram marcados pelo início da transição entre analógico para o digital). No entanto, apesar da Graphic Novel estar situada nos anos 1980, não é possível estabelecer uma marca temporal exata para o filme da turminha, que também não se debruça no uso de tecnologias analógicas vinculadas aos anos 1980. Esta estratégia, por sua vez, permite que diferentes faixas de público que acompanharam os quadrinhos da Turma da Mônica (originários da década de 1960) possam ter uma identificação temporal com a trama, não ficando restrita somente aos millenials.
Uma pontuação que se faz necessária quanto a questão temporal é que, apesar de não se ambientar na década de 1980, o primeiro longa-metragem do profícuo diretor de TV Carlo Milani é baseado na obra de Lucia Machado de Almeida, cujo livro O Escaravelho do Diabo é um dos mais reconhecidos lançamentos da série de literatura infanto-juvenil Vaga-Lume. Referência nas décadas de 1970, 1980 e 1990, a coleção era marcada por vir com suplementos de trabalho que traziam atividades voltadas para serem utilizadas no sistema educacional, o que ajudaram a garantir sua presença em bibliotecas escolares e salas de aula de todo o Brasil, e com grande impacto na juventude do período (DE PAULA, 2005, p.120). Por tal motivo, por mais que a obra cinematográfica busque atingir um público jovem (inclusive diminuindo a idade do protagonista, que no livro tem mais de vinte anos, e no filme, onze), ela também tem uma ligação bastante evidente com o período oitentista.
Outro ponto que vale ser notado são quanto as diferentes possibilidades de ambientação geográfica que o suburbanismo fantástico brasileiro traz. Em o Escaravelho do Diabo, a narrativa é passada na cidade fictícia de Vale das Flores filmada inteiramente no interior de São Paulo e que traz uma configuração de uma cidade pequena (equivalente a small town estadunidense). Ainda assim, o local ganha certas conotações de subúrbio, seja pelo hibridismo entre urbano e rural, seja pela proximidade que a cidade tem de São Paulo. O protagonista, por exemplo, é retratado como membro de uma família rica cujas rendas advém diretamente dessa posição intermediária entre o rural e o urbano, uma vez que são comerciantes de flores que abastecem a capital.
Já Turma da Mônica – Laços tenta criar o fictício bairro do Limoeiro com um recorte de diferentes lugares. Enquanto a parte residencial é filmada em Holambra (SP) (figura 1), as praças e parques são rodados principalmente em Poços de Caldas (MG). Chama-se assim a atenção pela tentativa de emular um ambiente idílico a partir de recortes de cidades pequenas do sudeste, e que pouco se parecem com Cambuí (figura 2), bairro da cidade Campinas que inspirou Maurício de Souza nos quadrinhos. Neste sentido, faz-se necessário ressaltar que uma crítica recorrente da própria Turma da Mônica é a “falta de brasilidade”. Verdolini (2007) aponta que os quadrinhos de Maurício de Souza sempre deixaram a localização brasileira em segundo plano, na busca de uma ambientação mais universal para disputar com os quadrinhos da Disney. Em Turma da Mônica – Laços, chama a atenção como o Limoeiro remete ao retrato clássico dos subúrbios estadunidenses, com casas com quintal, cercas baixas e pouco movimento automotivo. Vale ressaltar que enquanto Campinas (que inspirou os quadrinhos) é uma cidade grande com mais de 1 milhão de habitantes, a população de Holambra (onde a parte residencial do filme foi rodada) não chega nem a 20.000 residentes.

Acima: Bairro do Limoeiro em Turma da Mônica – Laços em comparação com o bairro do Cambuí, em Campinas.
Neste sentido, Mate-me por Favor é a obra que traz a ambientação mais original (uma vez que não replica a small town e nem o subúrbio estadunidense), ao situar sua narrativa na Barra da Tijuca, bairro da Zona Oeste do Rio de Janeiro, marcado pela sua urbanização repleta de condomínios de classe média-alta. Com um olhar bastante crítico para a Barra, a obra encontra proximidades bastante interessantes com os subúrbios estadunidense: além do recorte demográfico de classe média, são comunidades fechadas, com grande resistência à estranhos, cuja possibilidade de explorar os arredores é restrita aos jovens e extremamente dependentes do carro para o transporte pendular dos adultos. Ou seja, ao construir uma narrativa típica do suburbanismo fantástico, Mate-me por Favor ressalta ainda mais sua crítica da Barra como simulacro da classe média estadunidense.
Outro ponto particularmente interessante de ser analisado é a trilha sonora. Afinal, uma das marcas dos filmes mais nostálgicos desse novo momento do suburbanismo fantástico são justamente o uso de hits dos anos 1980 como Heart of Glass da Blondie em Super 8, Should I Stay, Should I Go do The Clash em Stranger Things e You Got It do New Kids on the Block em It – Capítulo 1. Uma vez que o público brasileiro (principalmente o millenial) corrobora da nostalgia por essas músicas, devido ao nosso consumo cultural estadunidense, se faz interessante analisar como se estruturam as trilhas de nossas produções: se elas trazem especificidades, ou se apenas replicam o modelo de hits internacionais.
No caso de O Escaravelho do Diabo, por exemplo, a obra de Milani investe em músicas originais como o rap Brisa Fria e o pop melancólico O Mal e a Cura. Estratégia parecida é usada por Turma da Mônica – Laços, que traz Tiago Iorc interpretando a música tema. No entanto, ao contrário de O Escaravelho do Diabo, Tuma da Mônica – Laços investe uma música embebida por nostalgia. Tais escolhas escancaram as apostas mercadológicas de ambos os filmes. Enquanto o Escaravelho do Diabo tenta trazer um ar moderno e cool, a adaptação da Graphic Novel da Turma da Mônica, foca em uma atmosfera atemporal e familiar.
Mate-me por Favor também tem sua parcela de composições originais, como é o caso de Novinha vem Cá e Sangue de Jesus. No entanto, a obra é marcada por uma trilha de hits internacionais do dance como Don’t Stop the Rock, In my Eyes e Take Me in Your Arms. Onde a obra se difere do suburbanismo fantástico estadunidense, no entanto, é que a nostalgia sonora não se faz exclusiva no uso da trilha internacional. O funk romântico Nosso Sonho de Claudinho e Bochecha, por exemplo, é possivelmente a música de maior destaque de toda trilha, sendo tocada em um dos momentos mais marcantes do filme. Dessa maneira, a obra consegue imbuir um sentimento nostálgico brasileiro a narrativa, corroborado por um desenho sonoro marcado por sintetizadores.
Considerações
É deveras importante destacar que o suburbanismo fantástico brasileiro não se encerra nestas três produções. Obras como O Segredo dos Diamantes (Helvécio Ratton, 2014), por exemplo, trazem possibilidades semânticas a serem mais exploradas: como a possibilidade de incorporar o interior colonial mineiro como palco de suas narrativas, indo de encontro a construção asséptica e idealizada dos subúrbios estadunidenses, e trazendo uma maior brasilidade.
Porém, uma lacuna fica logo clara: os nossos subúrbios (extremamente diversos) ainda se apresentam como tábula rasa para estas produções. Mesmo os subúrbios cariocas, tão marcantes em nossa produção audiovisual, ainda não se consolidaram como ambientações para receber as narrativas do subgênero. Existe assim uma sub-representação de corpos e de ambientações em nossas produções suburbanistas ao mesmo tempo em que existe uma subprodução destas narrativas. Isto é particularmente chamativo ao considerarmos os sucessos de crítica (Mate-me por Favor ganhou importantes prêmios no festival do Rio) e bilheteria (Turma da Mônica – Laços foi a terceira maior bilheteria brasileira de 2019) que algumas de suas obras tiveram, indicam bastante potencial para o futuro do subgênero no país.
Por fim, espera-se que este trabalho, ao sublinhar o suburbanismo fantástico e iluminar algumas de nossas produções brasileiras, auxilie pesquisadores e realizadores a investigarem mais a fundo o nosso histórico e considerar nossas possibilidades dentro de um subgênero cinematográfico com grande apelo mercadológico e com forte vinculação nostálgica.
Referências
CAMPOPIANO, J. Memory, Temporality & Manifestations of Tech-Nostalgia. Preservation, Digital Technology & Culture (PDT&C), 43(3), 75-85. 2014
DE PAULA, Z. Leia o livro, veja o filme, compre o disco: a formação do cinema juvenil brasileiro Maringá: EDUEM, 2016
McFADZEAN, A. Suburban Fantastic Cinema: Growing Up in the Late Twentieth Century. New York: Wallflower Press, 2019
SANTOS, C. Filmes “Sessão da Tarde”: O Clube dos Cinco e Seu Lugar Histórico na Cinematografia. Revista Vernáculo, UFPR, pp.49-60, 2004
VERDOLINI, T. Turma da Mônica: Trajetória Intertextual em 40 anos de História. Mackenzie, São Paulo, 2007
YOUNG, T. Um Realismo Mágico no Brasil ?: Um Levantamento. Mester, 24(1) 1995