Por: Maria Claudia Gorges e Marilda Lopes Pinheiro Queluz
Artigo originalmente publicado na Tom Caderno de Ensaios da UFPR, volume 5, 2019.
A ASCURI é uma associação cultural de realizadores e produtores indígenas de Mato Grosso do Sul composta por integrantes das etnias Guarani, Kaiowá[1] e Terena. Ela foi idealizada por Gilmar Galache e Eliel Benites, em 2008, em uma oficina de formação audiovisual, o Cine Sin Fronteras, realizada em uma aldeia Aymara, na Bolívia, e coordenada por Ivan Molina[2]. Ao longo de seu caminho, a ASCURI vem realizando oficinas de formação audiovisual, produzindo filmes e adquirindo equipamentos de produção fílmica para as aldeias nas quais realiza essas oficinas.
Sua existência hoje, em um contexto de desmonte de políticas públicas voltadas à cultura é, em si, uma resistência. Suas práticas, que visam desenvolver estratégias de formação, resistência e fortalecimento do jeito de ser indígena através da linguagem cinematográfica e das tecnologias de comunicação digitais, colocam em suspenso uma visão determinista da tecnologia, segundo a qual os indígenas perdem sua cultura na medida em que as tecnologias não indígenas se fazem cada vez mais presentes em suas aldeias. Neste processo a ASCURI vem realizando uma equação entre passado, presente e futuro na busca por um equilíbrio entre o fortalecimento do jeito de ser indígena e a incorporação das tecnologias não indígenas, ao mesmo tempo em que vem atualizando o jeito de fazer cinema, propondo um cinema de mutirão, que carrega em si o jeito de ser indígena, com sua preocupação com o coletivo, a horizontalidade, a autonomia e a ancestralidade.
Nesta entrevista, realizada entre setembro e outubro de 2019, conversamos com Gilmar Galache e Eliel Benites, idealizadores e integrantes da ASCURI, via videoconferência e por telefone, em momentos distintos. Gilmar Galache é um indígena Terena, que viveu grande parte da sua infância na aldeia Lalima, em Mato Grosso do Sul. Em 2005, iniciou o curso de Design Gráfico na Universidade Católica Dom Bosco (UCDB), e, em 2017, concluiu o mestrado profissional em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília (UNB)[3]. Eliel Benites nasceu na Terra Indígena Te’ýikue, em Mato Grosso do Sul. Formou-se na licenciatura indígena Teko Arandu, na área de ciências da natureza e, em 2014, concluiu o mestrado no Programa de Pós-Graduação e Doutorado da UCDB. É membro do movimento e comissão dos professores indígenas Guarani Kaiowá de Mato Grosso do Sul. Desde julho de 2013 atua como professor efetivo no Curso da Licenciatura Intercultural Teko Arandu da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), e em 2017, iniciou o doutorado em Geografia pela UFGD[4]. Conversamos com eles sobre as práticas audiovisuais desenvolvidas pela ASCURI, bem como sobre a sua situação atual e perspectivas para o futuro.

Gilmar Galache, à esquerda, e Eliel Benites, à direita.
1 – A ASCURI tem um caminho de realização de oficinas de formação audiovisual que já soma mais de dez anos. Qual é o olhar que vocês têm sobre esse percurso? Como a ASCURI se encontra hoje, quais são seus projetos atuais?
Gilmar: Hoje, a gente está, acho que na pior fase da ASCURI. A gente está vivendo uma fase muito ruim na verdade, sem apoio, sem investimento, sem edital, sem equipamento. Em 2015, 2016, tínhamos possibilidades bem interessantes, e aí começou a acontecer tudo, teve o desmonte da FUNAI, Ministério do Meio Ambiente, Ministério da Cultura, Ministério da Educação, que era onde a gente circulava. Não que a gente entrava com um edital diretamente com eles, nós pegávamos muitos editais já prontos de pessoas que já tinham, de projetos que já estavam acontecendo e entrávamos com a parte audiovisual, como parceiros, e aí tinha uma circulação, aí dava para comprar equipamentos, dava para comprar datashow, dava para viajar nas aldeias, fazer oficinas pequenas, e depois disso não tem mais e só vem piorando.
O equipamento que a gente tinha foi quebrando, e a maioria dos equipamentos que tínhamos era tudo comprado no Paraguai, e não está tendo mais essas possibilidades. A gente está tentando agora, lançamos uma campanha para comprar um equipamento para o Gilearde[5], justamente para testar e para tentar aprender como é essa plataforma de crowdfunding, porque a gente ouve muito falar, que você ao mesmo tempo em que consegue a grana, que dá um monte de problema. Então estamos testando ela, com um valor de quatro mil, para aprender como é que é, e tentar buscar esse caminho.
Estamos precisando muito de uma reunião grande que é o Cine Sin Fronteras, que é o curso que a gente fazia. Ano passado não conseguimos fazer, porque era para ser em Campo Grande, mas aqui o governo tem meio que uma política partidária, vinculada com ruralista, e ainda bem que não rolou até. Mas estava começando uma negociação. Vinha uma menina que trabalha na Secretaria de Cultura de Campo Grande, mas no fim não deu certo, e aí não rolou o Cine Sin Fronteras. Esse ano a gente queria fazer na Bolívia, porque é um valor que quase a gente não aplica tanta grana, porque lá o Ivan é bem articulado e consegue bastante apoio, só que a gente queria fazer uma experiência parecida com a que tivemos no primeiro Cine Sin Fronteras, de 2008, que é uma imersão mesmo em alguma aldeia do povo boliviano. O Ivan tinha falado que era Aymara, mas o valor era quarenta mil que a gente tinha que arrumar, e pensamos em fazer um crowdfunding. Mas a gente pensou que se a gente tem oitocentos, seiscentos seguidores no Instagram a gente não vai conseguir quarenta mil que tínhamos que arrumar, então vamos testar agora, queimar uma estratégia para na próxima conseguirmos um valor mais alto.
Também estamos tentando fazer um longa com um amigo, ele é de Campo Grande mesmo, se formou em Cuba, é um parceiro nosso e está propondo um longa com a gente, e acho que provavelmente vai sair, não sei quando vai começar, mas o plano é esse. Então, tem esse longa, o Cine Sin Fronteras e o Mosarambihára que estamos tentando ressuscitar de novo, que é um programa que fizemos em 2014, 2015, com a FUNAI e com o PNUD. E que foi um projeto que era para o fortalecimento do jeito de ser Guarani e Kaiowá, com recuperação de nascente, que é uma coisa mais de terra, não é tanto de cinema, mas que o cinema também andava, mas era coisa de recuperação ambiental, de sustentabilidade, de autonomia alimentar, que era uma coisa que a gente tocava, tocou por dois, três anos e depois deste desmonte todo a gente não teve outra possibilidade de continuar. Estamos tentando ressuscitar ele com algum apoio internacional, alguma coisa tem que acontecer, não sei. É mais ou menos este o plano e como está agora.
Eliel: A ASCURI tem uma longa caminhada desde 2008. Como associação ela existe desde 2012. Neste trajeto a gente tem uma ideia de que ela foi resistindo a vários momentos de pressão, no sentido de manter esse coletivo mais coeso ao longo do tempo, na perspectiva de fortalecer o cinema indígena. Mas estamos em um momento em que a gente tem que avaliar de que maneira continuar a resistência, porque não tem perspectivas em termos de financiamento, do governo, projetos para a gente fazer filmes. Então, estamos em um momento de reavaliar como seria a ASCURI daqui para a frente, por isso este ano nós estamos tentando planejar o ano que vem, as programações de debates, a avaliação deste grupo e do movimento de cinema indígena aqui em Mato Grosso do Sul.
2 – Quais foram as maiores dificuldades que vocês encontraram no processo de constituição das oficinas de formação audiovisual nas aldeias?
Gilmar: Naquela época a gente não sabia o que funcionava e o que não. Não tinha muito parâmetro na cabeça do que era certo e do que era errado, ou do que era possível e do que era impossível, e aí metíamos a cara igual doido. Já fomos para lugar só com a gasolina da ida, a gente já foi sem lugar para dormir, já comemos rango azedo, já fizemos oficina tendo que pescar para comer, sem banheiro, sem nada, e foi uma época bem legal, só que não sei, naquela época a gente tinha uma outra visão. Aconteceram várias coisas que acabamos desanimando. Você quando produz filmes assim de aldeia, não sei se é filme etnográfico, ou é filme de índio, ou de sei lá do que, essas terminologias, mas ela acaba caindo num gueto que é muito acadêmico, que é uma coisa que a gente de uns tempos para cá, a gente está meio saturado, porque começamos a produzir muita oficina, fazer muito, mas não conseguíamos visibilidade. Entramos nessa crise agora, muito fruto de vivermos nesse gueto de produção acadêmica, de pesquisa, a gente não sabe ir para outros lugares. No começo fazíamos filme para a gente mesmo, e nem colocávamos legenda, a gente era bem radical, acreditávamos que os filmes eram uma exposição do nosso jeito de ser e, como éramos muito novos, muito moleques, e como a gente não sabia muito das nossas raízes, essa exposição era algo que vulnerabilizava a gente. A gente via isso nos filmes, um dos maiores filmes que temos como experiência de uma coisa que vulnerabilizou as pessoas foi o Terra Vermelha[6], e aí vimos que as pessoas ficam malucas.
Havia outras experiências também, de outros realizadores indígenas que eram de outros segmentos e que acabaram se deslumbrando com esse mundo do audiovisual, do cinema. Muito vaidoso. Então produzíamos para nós mesmos, sem legenda, para a gente se entender, se compreender e se fortalecer. Depois de um período começamos a querer mostrar, e quem estava mais perto era a academia, e sempre esteve, em vários momentos apoiou, mas a gente não conseguiu sair desse gueto. A gente tem muito amigo que é da academia, que viu nossos filmes, mas é isso, a gente não tem uma visibilidade muito grande, não tem apoiador. Depois que quebrou o governo não temos apoio. É uma bolha que a gente vive, é uma bolha. E a gente não conseguiu sair dessa bolha. E essa é uma das coisas que eu acho que foi bom, mas ao mesmo tempo tem quatrocentas pessoas, antropólogos, pesquisando a gente, trezentos, que já pesquisaram, só isso né, é pequeno. Precisava expandir mais e não conseguimos. A gente parecia que tinha mais vontade, mais gás naquela época e hoje em dia é justamente isso. Como começou a ficar preso nessa bolha fomos desanimando, foi diminuindo essa vontade, porque a gente fazia filme para as mesmas pessoas, era como chover no molhado, queríamos fazer filmes para mostrar para as pessoas não sensibilizadas ou que desconhecem totalmente a cultura aqui de Mato Grosso do Sul, dos povos indígenas, mas ficávamos sempre naquele mesmo ciclo, passando naquele mesmo lugar, as mesmas pessoas vendo e não saía, e foi isso. Essa ida para o Rio de Janeiro mesmo, quando fomos estudar eu, o Kiki[7] e o Gilearde, era justamente para tentar estourar essa bolha e ir para outros lados do cinema, não do cinema mais comercial, mas do público que assiste o cinema mais comercial, porque a ideia era sensibilizar, mostrar. Mas também já nem está mais tanto assim, dá uma preguiça de sensibilizar os outros.
Eliel: Acho que a clareza, qual objetivo e papel do coletivo, do grupo da ASCURI na perspectiva de visibilizar melhor, compreender melhor o que seria o cinema indígena, o que seria o papel da ASCURI neste contexto. As pessoas que vão compondo a ASCURI até agora, ainda passam por esse processo, por isso tem muito jovem que vem e sai, mas sempre mantém o núcleo duro, o núcleo mais forte do movimento, quando se compreende bem o papel da ASCURI neste contexto todo.
3 – Como é a metodologia das oficinas de produção audiovisual realizadas pela ASCURI? Como vocês escolhem os participantes? Ou não escolhem? Há uma distribuição de função ou não? E de que forma a metodologia desenvolvida por vocês se diferencia de oficinas de formação audiovisual realizada por não indígenas?
Gilmar: Então, parece que a faculdade, as pessoas do meio da cidade, que tem o jeito de ser do não indígena, que não é coisa só de branco, de cor, que é de ser urbano, as pessoas que cresceram num ambiente urbano elas seguem um modelo ali, seguem aquele modelo, de vida, uma coisa meio filosófica na verdade, não é só metodologia, como se fosse uma ferramenta de aula pedagógica, mas um pouco é a filosofia, que a base é o nosso jeito, que é diferente do jeito da galera que foi criado no urbano. Então quando a gente vai dar aula é como se fosse fazer um mutirão para fazer uma casa, um mutirão para fazer uma roça. Não tem muito assim as figuras principais. Você é o arquiteto e fica só na sombra mandando, você é o mestre de obras, ou você é o cabeçante da roça[8], essas coisas que têm quando a gente lida com as coisas do meio urbano e rural também. Você vai trabalhar na roça e tem lá o cabeçante, vai fazer uma casa no mato, tem essa figura que não faz nada e tem os peões que ficam no sol. Então quando a gente vai fazer entre nós mesmos, assim, roda, às vezes um está servindo tereré, outro está cavando buraco, outro está cortando madeira, outro está pescando para comer, ou está matando uma vaca para fazer um churrasco, está acendendo o fogo, e o mutirão vai acontecendo, e um pouco é o nosso jeito de fazer cinema também. A gente vai rodando, uma hora pega a câmera, outra hora pega o som, outra hora o cara tem que ir lá não sei onde buscar uma saia de pena e faz produção, e vai rodando.
Então na produção do filme e nas oficinas de audiovisual a dinâmica é mais ou menos essa, que, na verdade, é um jeito que a gente faz as coisas. Vai fazer uma coisa na casa de reza na aldeia, a dinâmica é essa. E você vai fazer um açude, a dinâmica é mais ou menos essa. É assim quando o indígena traz a ideia. Quando o não indígena traz a ideia, parece que automaticamente a galera se posiciona numa situação que é acostumada, que é a de hierarquia, de ter as figuras. Às vezes não é imposto, mas às vezes a galera já vai colocando, principalmente quando ele tem dinheiro. Geralmente o não indígena quando chega com dinheiro num projeto grande, ele faz e acontece, tem tudo o que ele quiser. Então ele coloca quem ele quiser na sombra, quem ele quiser no sol, ele é o dono da bola. Mas aí quando a gente chega com as oficinas do Ivan, com essa metodologia toda, entra o não indígena e entra por outro caminho, ele começa a perceber, começa a trocar mais. Não é uma coisa assim, como se fosse algo que você nunca fosse entender, não, é um jeito de ver, aí a pessoa vai se compreendendo e vai analisando. E tem essa coisa do aprender fazendo. O Ivan é muito discípulo do Paulo Freire, porque ao mesmo tempo em que ele se formou em Cuba, na primeira turma de Santo Antonio de los Baños, ele tem também uma história política no MAS[9], que é o partido do Evo, e ele já foi exilado, ele já estudou Paulo Freire. Então a metodologia dele é muito pautada no aprender fazendo, na imersão, você viver ali o cinema o dia inteiro.
Eliel: A formação é sempre assim, as pessoas que têm mais sensibilidade, que têm vontade de fazer parte, de ouvir e compreender, já é um início. Agora, em termos de metodologia de ensino e participação, é sempre no contexto da luta Guarani e Kaiowá, parte da filosofia, cosmologia indígena, a constituição de mundo, o olhar, a partir dela você vai orientando toda a formação técnica, a estética, os modos de construção de narrativa, o que seria uma beleza indígena, no sentido que chama a atenção, no sentido de composição de imagem, narrativa. Então, absorvendo os conhecimentos técnicos da academia, mas sempre orientada pelo olhar tradicional indígena, por isso é possível fazer uma oficina pontual, mas dentro de um contexto maior. Por exemplo, o que seria uma imagem, a qualidade da imagem, o que seria o movimento de uma câmera, e toda a estratégia de como fazer de uma forma alternativa dentro da aldeia. Então eu vejo que a metodologia está sempre em construção e experimentação.
4 – Um dos eixos que norteiam as práticas que a ASCURI realiza, tal como está no site de vocês, é a aproximação e diálogo com os rezadores. Como isso ocorre na prática?
Gilmar: É uma coisa mesmo de vida. É uma relação que a gente tem que ir lá conversar com eles sobre qualquer coisa. A gente foi criando esse vínculo com eles. Não é assim, vou fazer um filme e vou lá conversar com o rezador. A gente conversa com eles sempre que dá, sempre que pode, e sobre qualquer coisa. Muitas vezes as dúvidas aparecem nesses filmes e a gente vai conversar com eles e eles acabam esclarecendo muitas coisas. É uma, não sei, não é aquela coisa assim, estou com esse roteiro aqui e vou conversar com o rezador, ou eu estou com esse projeto de filme aqui, eu vou conversar com o rezador, é algo de vida mesmo. Eu estou querendo fazer um remédio, eu estou com uma dúvida sobre como fazer uma roça, ninguém vai filmar, ninguém vai fazer nada, a gente vai lá e conversa. Eu estou com uma dúvida sobre a letra de uma reza, e a gente vai lá e conversa. Eles, os rezadores, vivem em outro tempo, em um tempo em que as pessoas da época deles, daquela época, não vivem mais, poucas pessoas estão vivas daquela época, às vezes nenhuma, há trinta, quarenta, cinquenta anos. E é muito difícil de você viver em um tempo que só você sabe, que só você sabe certas palavras, sabe certas histórias, que só você viu. Então quando você troca com ele, ele gosta muito. E aí a gente acaba aprendendo reza, canto.
Eliel: Essa orientação de construção de um cinema indígena é baseada a partir do olhar dos mais velhos, que obtém essas raízes tradicionais de visão de mundo, do que ele viveu no passado com o seu território, na sua plenitude. Por isso o olhar dos mais velhos orienta essa produção, mas adaptado à nova realidade de hoje, a partir desse diálogo com os outros saberes. O objetivo também é justamente fazer essa reaproximação entre os mais velhos e os mais jovens através dos processos de produção de cinema, e aí o cinema é como um elo, uma religação entre uma geração, que seriam os mais velhos, e as novas gerações de hoje. Então esse modelo, o modo do não indígena chegar ao contexto indígena, ela resultou nessa ruptura muito grande dessas gerações. Assim, o que a ASCURI está buscando construir é a recomposição dessas rupturas que ocorreu entre as gerações indígenas aqui na fronteira do Brasil, em Mato Grosso do Sul.
5 – Além de realizar as oficinas de formação audiovisual, a ASCURI também coordenava o Fórum de Discussão sobre a Inclusão Digital nas Aldeias (FIDA). Qual é a situação do FIDA hoje e a importância dele, destes momentos de discussões, para a prática da ASCURI?
Gilmar: O FIDA nós estamos tentando ressuscitar ele com o pessoal da RAJ[10], dos Guarani e Kaiowá. Porque ele era um momento que tínhamos para trocar, como é que estava usando, o que tem de novo, o que tem de bom. Trazíamos umas pessoas diferentes para falar sobre mídia, e nós mesmos e os rezadores falávamos também se estava bom, se estava ruim, se estava dando errado, se estava expondo. Mas, de repente, o FIDA foi tomando um outro formato que era um formato que não estava mais legal. O último FIDA que a gente fez foi em Amambai[11], junto com a Aty Guasu[12] e foi um tiro muito errado, pois a gente acabou não conseguindo comida para somar junto com a Aty Guasu, e a gente teve que comer a deles, e já era pouca. Então desanimou muito.
O FIDA foi virando meio bagunça sabe, no começo do FIDA tinha muito uma pegado do Brand[13], que foi um cara que incentivou muito o FIDA. E o Ivan era um cara que abraçou também, e ele vinha com uma pegada de método, de disciplina, toda a pegada que o Ivan tem. Mas com o tempo a gente não conseguia trazer mais ele, fomos tocando por conta e foi virando bagunça. Perdeu aquela coisa. Mas estamos tentando ainda. Ficou muito difícil, a ASCURI apesar de estar legal, ela passou dois anos inadimplente, agora está tudo certo, mas uma associação ela não foi feita para fazer filme. Uma associação parece assim, na cidade, que ela foi feita para representar as pessoas juridicamente, e para dar assistência médica, parece que é só isso. Porque quando você a pega e transforma numa associação de audiovisual, ela não tem mobilidade nenhuma, é extremamente amarrada, uma burocracia feia e tudo isso vai engessando essas possibilidades. Você vai fazer o FIDA, mas aí vai conseguir o dinheiro para a alimentação, ele tem que passar pela ASCURI, e a conta da ASCURI é muito complicado para você tirar o dinheiro de lá, e acaba que que você olha e fala, não, não tem como.
Ainda a gente está buscando um jeito de transpor isso, de enquadrar outros caminhos para conseguir trabalhar melhor, porque qualquer coisa que a gente faz via ASCURI é extremamente amarrado. Você tem que pagar nota, tem que ir no contador, é horrível. Não é legal, é triste. E a gente não tinha tanta burocracia, éramos só uma associação com o CNPJ, mas depois tivemos que abrir uma conta. A gente tem um site que paga trezentos reais por ano, e é horrível, acaba que você vai se definhando nesse meio burocrático e não anima para fazer outras coisas. Isso era uma coisa que a gente tinha no começo. A gente não tinha isso. A gente era tudo doido. A gente ia, tinha vontade, mas a coisa ficou tão amarrada.
Eliel: O FIDA era um momento, um fórum de discussão das novas mídias nas aldeias, era um processo que no início a gente entendeu que era o audiovisual. E hoje cada vez mais estamos focando no cinema. Quando você fala em audiovisual entra tudo, jornalismo, entra a chegada das novas mídias nas aldeias, meios de comunicação, rádio, televisão, e agora tem WhatsApp, todo esse debate desses novos meios de comunicação, desse mundo digital. Então ele entrou neste debate, e por algum tempo a gente focou muito no cinema, e tudo isso faz parte também. Hoje nas discussões está como é que o indígena Guarani, Kaiowá e Terena aqui de Mato Grosso do Sul absorve essas novas tecnologias de comunicação, como utilizamos ela, então é necessário um debate e o amadurecimento neste sentido. Esse seria o FIDA, mas, para um debate mais local, regional. Nós temos também o Cine Sin Fronteras, um curso de cinema mais internacional, participou dele a galera da Bolívia, aqui do Brasil e ele também é composto por outras etnias, por exemplo grupos Guarani Mbya, e tem outras pessoas que vão participando, e vão se aproximando dessa rede.
6 – Em seu site de divulgação do projeto, vocês colocam que um dos objetivos da ASCURI seria desenvolver estratégias de resistência. Sendo assim, o que seria essa resistência?
Gilmar: Fazendo isso que a gente está fazendo, tentando ficar vivo. Tentando manter um nome. Porque ao mesmo tempo a gente tem essa resistência territorial toda que a gente está aí, andando pelas aldeias, investindo, plantando e fazendo festas nas retomadas, essas coisas todas, é uma forma de resistência. Falar uma língua que ninguém mais fala também é outra resistência, palavras que ninguém conhece, que o jovem perdeu, porque a língua vai mudando tanto, tem palavras que eles já não sabem mais, canto, que eles já não sabem mais. Então, comida, criação, remédio medicinal, quando você prática isso na sua vida é uma forma de resistência, e aí você faz um filme sobre isso, propaga mais. E ficar vivo, manter isso tudo aí, é uma forma de resistência horrível. E a coisa das retomadas, tomar tiro para fazer filme, essas coisas.
Eliel: Resistência é, por exemplo, os saberes, o modo indígena de viver, ela está bastante ligada aos mais velhos. As novas gerações estão cada vez mais se adaptando nessa relação com o não indígena, e nesse processo o cuidado é muito grande, porque o mundo moderno vai encantando os jovens e ele acaba deixando suas raízes, e aos poucos vai perdendo a língua, vai perdendo os saberes, mitologia, cosmologia, a religiosidade tradicional. Então a resistência é justamente fazer um cinema voltado para ele, como um espelho, ele fica olhando seus valores. Quando os saberes tradicionais estão em uma tela, em uma projeção, no cinema, ele observa que as tecnologias estão sendo usadas para fortalecer esses saberes tradicionais que orientam a existência tradicional indígena. Assim, a resistência é a continuidade dos valores tradicionais no mundo atual, tudo isso é uma resistência, porque o modelo de vida moderno vai se sobrepondo ao mundo indígena. Então o cinema é justamente buscar resistir a esse mundo mostrando ao mundo maior, a uma sociedade maior, o valor que o indígena tem. O valor no sentido da especificidade que ele tem e que pode contribuir para a sociedade de uma forma mais ampla, enquanto opção de vida também. E o efeito interno, isso seria o efeito externo, o efeito interno seria que os jovens voltassem a fazer a religação entre a sua vida com a tradicionalidade indígena. A revalorização dos mais velhos. Então isso seria resumidamente a ideia que nós temos de resistência.
7 – Como vocês veem o futuro da ASCURI?
Gilmar: Se a gente não conseguir, a gente tem que estar se reinventando totalmente, porque se a gente não conseguir se reinventar e criar novas possibilidades vamos acabar. Em 2017, 2018 quase acabamos. A gente já estava inadimplente e não tinha mais como limpar, não tinha a possibilidade de arrumar grana para nada e estávamos bem sem equipamento, tudo dando errado, quase acabamos. Voltamos, mas por mais dois, três anos a gente vai tentar. Se não der nada achamos melhor encerrar. Quando a gente lê a nossa história e lê nossos trabalhos parece que tem um movimento muito revolucionário, mas a gente é gente. Os caras e meninas vão transando e fazendo filhos e a estrutura familiar não é mais aquela, não somos um pedaço de pau que fica lá, inerte, a pessoa vai dependendo e vai querendo arrumar trabalho e a ASCURI não tem como manter. A gente queria manter pelo menos as formações, transformar isso numa escola de cinema de práticas desse jeito de fazer a vida, desse jeito de lidar com a vida. Hoje parece ser tão louco ter uma sociedade em que a gente vive, porque eu vejo muito quando você vai nos movimentos, por exemplo, o festival de cinema de Brasília do ano passado, ou retrasado, um ódio tão grande entre pessoas que estavam na mesma sala, que buscam a mesma compreensão sabe. É o negro brigando com todo mundo, trans brigando com todo mundo, a mulher brigando com todo mundo, e em um momento que, sei lá, a gente deveria ouvir mais. Estamos vivendo numa época muito doida. Esses papos assim, parece coisa de maluco. Falam assim, ah, um jeito de ser diferente que valoriza a compreensão, a natureza, e vamos viver da terra, isso daí não faz sentido nenhum. Isso parece que não faz sentido nenhum, parece que esse cara está muito louco, melhor a gente se matar aqui mesmo, você pisou no meu calo, você é isso, é homofóbico, vamos matar, fogo nos racistas, esses papos bravos que é muito uma coisa copiada assim do americano, daqueles movimentos sociais americanos. Na verdade, eu estava construindo minha casa na aldeia faz uma semana, eu estou voltando para a aldeia, porque eu não dou conta mais de lidar com as pessoas.
Eliel: Agora eu vejo que muitas pessoas como o Kiki, o Gilearde, o próprio Gilmar, e outras pessoas, estão cada vez mais maduras no processo de formação, têm uma experiência grande em termos de compreensão sobre a luta e a resistência, e a importância dos indígenas tanto Guarani, Kaiowá e Terena, na qual se baseia a ASCURI. Mas também há agora a possibilidade de que mais pessoas não indígenas possam compor esse grupo. A ideia principal é como mostrar o olhar indígena para o mundo, o que é cinema indígena, então não é necessário a gente se fechar ao nosso grupo somente indígena. Há também a possibilidade de um diálogo maior com as pessoas que têm uma sensibilidade e, neste sentido há uma estratégia muito interessante de resistir a todas as mudanças que acontecem. Mudanças que ocorrem no contexto político e no contexto de mudança das pessoas, pois a gente vivenciou muito isso, pessoas que a gente contava e depois nos deixavam, depois outras pessoas entram. Essa mudança toda faz parte do cotidiano. Eu vejo que o futuro da ASCURI é, neste momento, ainda uma redefinição, no sentido de uma abertura maior para as pessoas entrarem nela para fortalecer a própria ideia da ASCURI.
Referências bibliográficas
ASCURI. Nosso Jeito. Disponível em: <https://ascuri.org/nosso-jeito>. Acesso em: 02 set. 2019.
BENITES, Eliel. OGUATA PYAHU (Uma nova caminhada) no processo de desconstrução e construção da educação escolar indígena da reserva indígena Te’ýikue. 165f. Dissertação (Programa de Pós-Graduação em Educação), Universidade Católica Dom Bosco, Campo Grande, 2014.
CAMPOS, Andre. Trabalho fora da aldeia desestrutura comunidades Guarani. Repórter Brasil. Disponível em: https://reporterbrasil.org.br/2008/07/trabalho-fora-da-aldeia-desestrutura-comunidadesguarani/>. Acesso em: 04 out. 2019.
COLMAN, Rosa Sebastiana. Guarani retã e mobilidade espacial guarani: belas caminhadas e processos de expulsão no território guarani. 240f. Tese (Doutorado em Demografia), Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Campinas, SP, 2015.
GALACHE, Gilmar Martins. KOXUNAKOTI ITUKEOVO YOKO KIXOVOKU – Fortalecimento do jeito de ser Terena: o audiovisual com autonomia. 123f. Dissertação (Mestrado em Sustentabilidade junto a Povos e Territórios Tradicionais) – Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília, Brasília, 2007.
RIBEIRO, Cristina Ramos da Silva; SILVA, Oswaldo Ribeiro da. Entrevista – Antonio Brand. Tellus, n.38, p. 429444, jan./abr., Campo Grande, 2019.
URQUIZA, Antonio Aguilera Hilário; PRADO, José Henrique. O impacto do processo de territorialização dos Kaiowá e Guarani no Mato Grosso do Sul. Tellus, n. 29, p. 49- 71, jul./dez., Campo Grande, 2015.
Notas
[1] Segundo Colman (2015, p. 3-4), no Brasil, a população guarani está dividida em três grupos sóciolinguístico-culturais: Ñandeva, Kaiowá e Mby. Neste texto nos referimos aos Guarani Ñandeva e Guarani Kaiowá, como Guarani e Kaiowá, por ser a forma como eles se autoidentificam, segundo Urquiza e Prado (2015, p. 50).
[2] Ivan Molina é um indígena boliviano, originário do povo Quéchua, formado em cinema pela Escola Internacional de Cinema e Televisão de Cuba (EICTV), e que tem uma história de luta pela valorização da ancestralidade andina (GALACHE, 2017, p. 57-58).
[3] Cf. (GALACHE, 2017, p. 9-15).
[4] Cf. (BENITES, 2014, p. 13-33).
[5] Gilearde é um realizador indígena, do povo Guarani Kaiowá e integrante da ASCURI.
[6] Terra Vermelha é um longa, dirigido por Marco Bechis, de 2008.
[7] Ademilson Concianza Verga também é um realizador indígena e integrante da ASCURI.
[8] O cabeçante de roça é como um líder que faz a intermediação com os contratantes. Cf. (REPÓRTER
BRASIL, 2019).
[9] (MAS) Movimento para o Socialismo partido do presidente boliviano Evo Morales.
[10] (RAJ) Aty Guasu Jovem.
[11] Terra Indígena habitada por Guarani e Kaiowá.
[12] Grande Assembleia Guarani Kaiowá.
[13] Antônio Jacó Brand foi o fundador Conselho Indigenista Missionário de Mato Grosso do Sul, fez parte do grupo docente da Universidade Católica Dom Bosco (UCDB), em Campo Grande, MS, onde iniciou seu trabalho no Núcleo de Estudos e Pesquisas das Populações Indígenas (NEPPI), que participou, por um período, da coordenação do primeiro FIDA. Cf. (RIBEIRO; SILVA, 2019, p. 430).
Sobre as autoras:
Maria Claudia Gorges é doutora em Tecnologia e Sociedade pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR) e mestre em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). É professora de Filosofia na Secretaria da Educação do Paraná (SEED). E-mail: mariaclaudiagorges@gmail.com.
Marilda Lopes Pinheiro Queluz é doutora em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) e mestre em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). É professora do Programa de Pós-Graduação em Tecnologia e Sociedade da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (PPGTE/UTFPR). E-mail: pqueluz@gmail.com.