Artigo escrito por Paulo Victor Costa e Yan Manchester, graduandos em Estudos de Mídia pela Universidade Federal Fluminense (UFF). O texto foi publicado originalmente no catálogo da 1ª edição do REC Festival: Festival de Roteiro e Escrita Criativa, realizado em 2021.
Os anos 60 foram marcantes para as artes em geral no mundo todo. Teatro, música, literatura, artes plásticas, arquitetura e, principalmente, o cinema. Essa última expressão artística estendeu-se por quase todos os continentes, sendo possível citar como exemplo o Novo Cinema Alemão, o Cinema Jovem Suíço, a Nouvelle Vague na França, o Cinema de Quebec, os cinemas no Egito e no Líbano passaram por transformações desde a década de 50, o cinema na Argélia, Tunísia, Marrocos, Síria, Iraque. A América Latina também não fica de fora desse período. Argentina, Bolívia, Uruguai, Colômbia e Peru, por exemplo, desenvolvem movimentos político-culturais importantíssimos, especialmente na segunda metade da década de 60.
O cinema brasileiro também passou por uma grande mudança com o Cinema Novo. O “Novo”, nesse caso, tem um ponto fundamental, assim como dizia um dos membros do movimento, Paulo César Saraceni (diretor dos curtas Caminhos e Arraial do Cabo): “O cinema novo não é uma questão de idade; é uma questão de verdade.” Formado por cineastas como Glauber Rocha, Cacá Diegues, Nelson Pereira dos Santos, Joaquim Pedro de Andrade, Leon Hirszman, Miguel Borges, todos eles tinham o costume de discutir sobre questões problemáticas do cinema brasileiro, além das suas visões particulares acerca da linguagem cinematográfica, em reuniões. Boa parte deles influenciados pelo neorrealismo italiano de Rossellini, De Sica, entre outros, da década de 40.
Muitos autores costumam colocar o longa Rio 40 Graus (1955), de Nelson Pereira dos Santos, como uma das primeiras produções, pensando nos conceitos abordados pelo Cinema Novo. Outros preferem trabalhar com a ideia de que o movimento começa a ganhar forma a partir de curtas como o já citado Arraial do Cabo (1959) ou Aruanda (1960), de Linduarte Noronha. Fato é que, ao longo dos anos 60, uma série de cineastas começou a levantar, por meio de seus filmes, questões políticas; sociais; críticas ao cinema industrial (artesão, de privilégio aos recursos técnicos) e à ideologia hollywoodiana (a fábrica de sonhos) que se fazia dominante no modo de produção cinematográfica; tentavam buscar uma forma de representar o povo brasileiro, na qual expressasse as suas dificuldades e as causas para essas. Era um movimento disposto a romper com os ideais implementados na forma de “comunicação” do cinema. Para esses cineastas, o fundamental era “criar” e não “comunicar”. Criar, por exemplo, uma nova linguagem cinematográfica, diferente das reproduções de filmes “à americana”. E, a partir dessas constantes criações (invenções), buscar estabelecer um diálogo com o público a fim de fazer com que esse pensasse sobre as questões fundamentais, abordadas nas histórias projetadas nas telas.
O Cinema Novo se desenvolve após um contexto de tentativas de elaboração de uma indústria cinematográfica no Brasil. Experiências no Rio de Janeiro como a “Companhia Cinédia” e “Atlântida Cinematográfica” nas décadas de 1930 e 1940, e em São Paulo, como a “Maristela” — fundada em 1950 — e a “Multifilmes”. No entanto, um dos casos mais marcantes foi o da “Companhia Cinematográfica Vera Cruz”, fundada em 1949 e sediada em São Bernardo do Campo. A experiência recebeu um forte apoio da elite financeira paulistana e de vários jornais, que enxergavam na criação da companhia a possibilidade de atingir um “padrão técnico de qualidade”. Inclusive, o lema da Vera Cruz era: “Produção brasileira de padrão internacional”, o que resume muito bem os objetivos dos envolvidos.
Mas é importante se questionar a respeito dessa “produção brasileira”. O cinema é um meio muito influente há décadas. No entanto, a penetração das técnicas e das ideologias do cinema hollywoodiano foi tão grande em outros países que esses diferentes cinemas nacionais começaram a produzir seus filmes “à americana”, como se fosse a regra. Ou seja, o cinema americano confunde-se com a ideia de cinema. Nesse caso, trata-se de uma produção nacional ou de uma reprodução da cultura estadunidense? A Vera Cruz, assim como muitas outras, estava inserida nesse contexto.
Após anos e anos desse processo — que trata o cinema como entretenimento —, o público brasileiro começa a manifestar um alto interesse num tipo específico de filme, que corresponde à fábrica dos sonhos hollywoodiana. O star system, a criação de heróis, as histórias que sempre têm um final feliz, ou que transmitem uma lição/mensagem, a redução por completo de questões políticas/sociais, a alta dose de moralismo, entre outros, caracterizam o “cinema perfeito”.
Isso se reflete nos poucos filmes produzidos pela Vera Cruz. É possível citar casos como Ângela (1951), de Abílio Pereira de Almeida e Tom Payne; Terra É Sempre Terra (1951) e Sinhá Moça (1953), ambos de Tom Payne; e O Cangaceiro (1953), de Lima Barreto. Esse último foi um sucesso internacional, conquistando, inclusive, prêmios no Festival de Cannes com o título The Bandit of Brazil (“O Bandido do Brasil”). Uma produção filmada no interior de São Paulo, mas que tinha como proposta apresentar o sertão brasileiro. Além disso, os elementos do gênero western hollywoodiano estavam bastante presentes, assim como a simplificação da história a uma briga entre o “bem” e o “mal”.

A Vera Cruz era, de acordo com Glauber Rocha e outros autores que pensavam sobre o tema, um dos símbolos do chamado “cinema de imitação” (do artesão, do entretenimento). Ou seja, um cinema de reprodução da cultura de outro país, usando o contexto brasileiro. E, consequentemente, reprodução de uma linguagem com a qual o público já se identificava. Isso gerou altos índices de bilheteria aos seus filmes. No entanto, não foi o suficiente para bancar os altos custos com o star system, com a contratação de técnicos estrangeiros, os gastos com publicidade, a enorme quantidade de empréstimos feitos com bancos etc. Isso sem contar com um grave problema do cinema brasileiro, que é a distribuição. Essa etapa do processo cinematográfico era realizada pela estrangeira Columbia Pictures, que colocava os filmes brasileiros no mercado internacional sem promover muito esforço financeiro.
Se a Vera Cruz é o “cinema da imitação”, o Cinema Novo é o “cinema original”. O movimento coloca o desafio de criar uma nova linguagem, ao invés de usar a linguagem da reprodução da cultura estadunidense. Esse tenta mostrar a perfeição, mas o Cinema Novo é imperfeito e, portanto, é difícil de ser recebido de modo tão positivo num primeiro momento. Além disso, não são filmes que seguem um “padrão técnico”. Nesse ponto, são produções escassas. E nem têm esse objetivo, pois não correspondem à realidade social. O que seria de Vidas Secas (1963), de Nelson Pereira dos Santos, se ele tivesse sido gravado em um estúdio ou com uma iluminação artificial?
Enquanto o cinema de entretenimento buscava se comunicar com o público, os integrantes do Cinema Novo se perguntavam: Comunicar o quê? Seus filmes não tinham como fundamento apresentar histórias mastigadas, com lições de moral e sim projetar os verdadeiros desafios enfrentados pela maioria da sociedade brasileira, levantando questões sobre esses desafios, desde seus motivos até as possibilidades de mudança.
Os cinemanovistas compreenderam bem as bases, estruturas e os problemas das experiências da indústria cinematográfica, sobretudo, daquela promovida pela elite paulista. Portanto, eles sabiam exatamente o que não fazer. Isso remete a um texto muito interessante, intitulado “O Cinema Novo e a Aventura da Criação”, no qual Glauber atribui a Nelson Pereira dos Santos a seguinte frase: “Não sei por onde vou, mas sei que não vou por ali!”.
É possível perceber essa questão, por exemplo, na etapa de produção e distribuição cinematográfica. A partir de 1965, o Cinema Novo organiza a produtora “Mapa Filmes” e a distribuidora “Difilm”, organizando um mercado cinematográfico brasileiro para que seus filmes pudessem ser exibidos. Inclusive, com a possibilidade de distribuição internacional. Muitas produções cinemanovistas passaram por tradicionais festivais de cinema, como Cannes e Veneza. Isso tudo, logicamente, sem o objetivo dos grandes empresários de lucrar cada vez mais.
Glauber Rocha é considerado um dos principais cineastas do movimento Cinema Novo surgido nos anos 1960. Com seu jeito único e irreverente para produzir suas ideias não tão convencionais, Glauber cunhou a frase “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”. Tratava-se da defesa à utilização dos meios de produção artística a serviço da transformação social.
Em 1965, um ano após Glauber ter ido à Cannes por sua indicação com Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), o cineasta publicou um dos mais importantes manifestos da história do cinema brasileiro: “Eztetyka da Fome”. Empenhado, naquele momento, em afirmar um programa para o cinema brasileiro, Glauber de imediato primou a sistematização do ideário e das diretrizes do Cinema Novo.
O manifesto se tornou uma espécie de estatuto do movimento. Glauber almejava que o cinema servisse como ferramenta de mudanças sociais profundas e não mais um meio que se limitaria a denunciar as misérias do povo. Desta forma, Glauber expôs que “somente uma cultura da fome, minando suas próprias estruturas, pode superar-se qualitativamente: e a mais nobre manifestação cultural da fome é a violência”.
Pode-se dizer que Glauber faz referência explícita à obra “Os Condenados da Terra’“, de Frantz Fanon. Nesta leitura, a violência é o elo fundador do colonialismo. O manifesto glauberiano, considerado o mais célebre do cineasta no exterior, traduzido e difundido pela América Latina, representa uma tentativa de Glauber de defender a originalidade do novo cinema latino americano, enfrentar de peito aberto a sua condição de subdesenvolvimento e superá-la, como diz nesta passagem do manifesto:
Uma estética da violência antes de ser primitiva é revolucionária, eis aí o ponto inicial para que o colonizador compreenda a existência do colonizado; somente conscientizando sua possibilidade única, a violência, o colonizador pode compreender, pelo horror, a força da cultura que ele explora. Enquanto não ergue as armas, o colonizado é um escravo.
O Cinema Novo era concebido por Glauber como a vanguarda das vanguardas.
O movimento cinemanovista buscava pautar o debate sobre identidade nacional de maneira autêntica no que tange o homem brasileiro. A construção do futuro através de um homem novo se daria a partir da “desalienação”, conferindo ao povo uma visão real sobre sua realidade através de engajamento ideológico. Desta forma, se daria o estreitamento de laços entre a busca da identidade nacional e o projeto de libertação nacional através de uma revolução nacionalista.
Como as cinematografias cinemanovistas abordavam temáticas inerentes à miséria dos brasileiros e o entendimento das raízes do subdesenvolvimento brasileiro, o movimento foi bastante prejudicado nos anos seguintes. Após a instauração do AI5, em 1968, as produções padeceram ainda mais, especialmente com a fundação da “Embrafilme” pelo governo militar. Em razão desses acontecimentos, é possível dizer que o Cinema Novo navegou por três momentos distintos na história do cinema.
Seguindo nos anos 60, o Cinema Novo vivia seu auge até o golpe militar. Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Ruy Guerra, Leon Hirszman, eram os baluartes desse primeiro período. Vidas Secas (1963), dirigido por Nelson e baseado no livro homônimo de Graciliano Ramos; Os Fuzis (1963), de Ruy Guerra; e Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), obra de Glauber, marcaram seu espaço e fazem parte da famosa trilogia do sertão. Ou então, os curtas Couro de Gato, de Joaquim Pedro de Andrade, e Pedreira de São Diogo, de Hirszman, que foram compilados juntos a outras produções no filme Cinco Vezes Favela (1962).
Glauber informa em seu já citado “Eztetyka da Fome”: “O que fez do Cinema Novo um fenômeno de importância internacional foi justamente seu alto nível de compromisso com a verdade…”. É um cinema duro, violento quanto às imagens projetadas, pois assim era (e é) a realidade de uma grande parcela da sociedade brasileira. Os heróis do Cinema Novo são aqueles que lutam contra os grandes proprietários de terra; enfrentam a fome e a seca. São personagens reais. Os finais não são felizes, pois, dessa forma, seriam alienantes. Passariam a falsa ideia de que os graves problemas de cunho político/social/econômico são facilmente solucionáveis.
O Cinema Novo foi um movimento contra o “cinema de imitação” em todos os seus aspectos. Seu objetivo era criar. E nessa aventura da criação, cada cineasta estabeleceu a sua própria linguagem, mas apresentando um outro lado do Brasil, imperfeito. Diferentemente, dos filmes industriais, comerciais e “perfeitos” da “Companhia Cinematográfica da Vera Cruz”. O movimento, que não se omitia perante o social, foi necessário para um conhecimento mais profundo da sociedade brasileira.
Referências
ROCHA, G. Eztetyka da Fome. In:_______. Revolução do Cinema Novo, p. 28-33. Rio de Janeiro: Alhambra/Embrafilme, 1981.
ROCHA, G. O Cinema Novo e a Aventura da Criação. In:_______. Revolução do Cinema Novo, p. 95-118. Rio de Janeiro: Alhambra/Embrafilme, 1981.
XAVIER, I., Cinema Brasileiro Moderno. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2001.
GOMES, P. E. S., Cinema: Trajetória no Subdesenvolvimento. São Paulo: Editora Paz e Terra, 1996.
CATANI, A. M. A Aventura Industrial e o Cinema Paulista (1930-1955). In: RAMOS, F. (org.). História do Cinema Brasileiro, p. 189-298. São Paulo: Art Editora/, 1990.