Sexta-Feira, 1º de Julho de 2022, a Netflix irá lançar a 2ª parte da 4ª Temporada de Stranger Things. Aproveitando o hype, hoje trarei uma discussão que pode ajudar ao espectador a tirar novas perspectivas sobre como a série traz uma leitura de mundo avessa às autoridades (seja ela o Estado, o poder público ou mesmo figuras paternas) e romantiza o poder e a capacidade dos indivíduos e dos pequenos coletivos. Já vou avisando: haverão spoilers da primeira metade da 4ª Temporada.

O que é o suburbanismo fantástico?

Antes de mais nada é bom contextualizar para o leitor a definição do subgênero em que Stranger Things se encontra. Segundo McFadzean:

Suburban Fantastic Cinema é um nome usado para designar um conjunto de filmes Hollywoodianos que começaram a aparecer nos anos 1980, onde crianças e adolescentes que vivem no subúrbio são chamados para confrontar uma força fantástica e disruptiva – fantasmas, aliens, vampiros, gremlins e robôs maldosos. São filmes que emergiram de obras focadas no público adulto, melodramas suburbanos, e filmes e programas de horror, fantasia e aventura, clássicos dos anos 1950, e que passaram a ser sinônimo dos trabalhos de diretores como Steven Spielberg, Joe Dante, Robert Zemeckis e Chris Columbus. Comumente adereçados como filmes de crianças ou filmes “família”, sendo parte-chaves da infância do fim da geração X (1965-1980) e de toda geração millenial (1981-1996). (McFADZEAN, 2019, p.1) (Tradução do autor)

São o caso de obras como E.T. – O Extraterrestre, Gremlins, Esqueceram de Mim e De Volta para o Futuro – filmes os quais Stranger Things têm como principais referências. Com a produção iniciada na década de 2010, Stranger Things faz parte de um ciclo reflexivo do gênero, tal qual It – Capítulo 1 e 2, e Fear Street: 1994 – obras refletem ssobre as produções anteriores e sobre os próprios anos 1980.

 

O que significa amadurecer no Suburbanismo Fantástico?

Lars Olson (2011, p.33) relembra que ao final de uma das mais importantes obras infanto-juvenis dos Estados Unidos, As Aventuras de Tom Sawyer, Mark Twain termina seu livro dizendo: “como esta é a história de um garoto, ela precisa terminar aqui; a história não pode ir muito além sem se tornar a história de um homem” – demonstrando a tensão sempre presente entre a juventude e o amadurecimento. Essa tensão existe pois a narrativa de amadurecimento requer o aprendizado de certas características vistas como ideias para se tornar um adulto ativo na sociedade. Em outras palavras, a necessidade se reconciliar com alguns valores sociais e morais em prol do reconhecimento por outros adultos. Por conta disso, o maior medo de todo protagonista do suburbanismo fantástico (e Stranger Things segue a regra) é se tornar igual seus pais – e sua maior conquista é ser reconhecido pelos mesmos.

Minha mãe era jovem. Meu pai era mais velho, mas tinha um emprego confortável, dinheiro e vinha de uma boa família. Então, eles compraram uma bela casa no final da cul-de-sac e começaram sua família nuclear. Dane-se isso. Sim. Dane-se. (Nancy Wheeler na 1ª temporada de Stranger Things)

Porém, esse reconhecimento dos protagonistas por pais e autoridades não se dá por uma melhor comunicação ou por uma exposição dos sentimentos. Já que o subgênero mescla a estrutura dos coming-of-age dramas com o melodrama heróico, amadurecer nessas sobras significa performar atos heróicos. Daí a ideia de que no Suburbanismo Fantástico é mais fácil amadurecer do que pedir desculpas. Veja, por exemplo, a quantidade de tempo que Stranger Things mostra seus protagonistas interagindo com seus pais e quanto tempo é dedicado à eles salvando o mundo de conspirações governamentais e criaturas de outra dimensão – e no final, tudo está resolvido, inclusive as crises familiares. Um excelente exemplo desta questão se dá na segunda temporada da série, quando Eleven é presa em casa pelo seu pai adotivo, Jim Hopper. A série investe um grande tempo demonstrando a distância entre os dois personagens e as tentativas falhas de se reaproximarem. Essa reaproximação, por sua vez, se dá após Eleven se arrepender (sozinha) de fugir de casa e salvar Hawkins de um portal do Upside Down.

Ashley Carranza (in WETMORE, 2018) vai importar a teoria da autodeterminação (Self Determination Theory) da psicologia para explicar esse “processo de amadurecimento” em Stranger Things e como ele está vinculado à problemas parentais. Em suas palavras

A teoria da autodeterminação descreve o método psicológico pelo qual uma pessoa se torna dependente de si mesma e permite que os impulsos internos se concentrem no processo de tomada de decisão. Se tornar auto suficiente é parte natural da vida, mas existem inúmeras instâncias em que essa independência é garantida muito cedo. Esse rito antecipado não se dá porque a criança está pronta ou merecedora, mas é resultado de seus pais serem incapazes de providenciar a estabilidade esperada para elas. (…) explica o rápido amadurecimento dos personagens, bem como a disposição para formar laços fortes, criando o coletivo de crianças protagonistas. Essas crianças inadivertidaemente abraçam a autodeterminação como modo de defesa pela falta da proteção de seus pais (…) (CARRANZA in WETMORE, 2018, p.15) (Tradução do autor).[1]

Carranza então vai definir que a teoria da autodeterminação sublinha três necessidades psicológicas básicas que todo o ser humano tem: afinidade (criar relações afetivas com outros), competência (ser eficiente em seu próprio ambiente) e autonomia (tomar o controle da própria vida). Enquanto a primeira ressalta os os “valores da amizade com outros jovens”, as outras duas ressaltam competências individuais e heróicas.

 

O Herói existe onde as autoridades falham.

“Uma comunidade em um paraíso harmônico é ameaçada pelo mal: instituições normais falham em conter a ameaça. Um herói altruísta emerge para renunciar as tentações e implementar sua tarefa redentora. Ajudado pelo destino, sua vitória decisava restaura a comunidade para sua condição paradisíaca. Então, o herói retorna ao obscurecimento.” (Lawrence & Jewett, 1977, p.215) (Tradução do autor)[2]

A estrutura do monomito do herói estadunidense descrita acima, é um exemplo da superlativização do indíviduo ao mesmo tempo que apresenta uma visão pessimista das instituições democráticas e de suas responsabilidades públicas. Isso se deve pois em Stranger Things (e no suburbarnismo fantástico em geral), o “fantástico” só disrompe a tranquilidade pois as autoridades (policiais,  detetives, professores, prefeitos e pais) são ineficientes, corruptas ou mesmo vilanescas. Butler (in WETMORE, 2018, p.75) chama a atenção como essas figuras parecem completamente ineficientes frente a face do mal, desacreditando as crianças enquanto elas cada vez mais correm perigo.

Uma execeção dessa construção se dá na terceira temporada da série, quando Nancy Wheeler tem uma conversa importante com sua mãe, Karen, sobre sonhos, machismo institucional e seu lugar como mulher na sociedade. Ali, Karen age de forma bastante diferente dos demais pais da série (inclusive de seu marido) – usando de seu tempo para dar conselhos e, principalmente, ouvir sua filha. No entanto, esta relação entre as duas não é mais retomada, e a cena surge como “um ponto fora da curva”. Mesmo Joyce Byers, a mãe mais atuante da série, lutando sozinha para resgatar Will nas 1° temporada, parece ter perdido essa conexão com seu filho na 4° temporada – não apenas esquecendo seu aniversário (um lapso dos roteiristas da série), mas não compartilhando com ele e Jonathan, os detalhes de sua viagem para resgatar Jim Hopper.

No entanto, essa não é nem de longe o maior exemplo de ausência parental da 4° temporada. O que falar da mãe de Dustin, ou dos pais de Lucas e Mike quando descobrem que seus filhos e amigos podem ser linxados por uma violenta turba em busca de vingança? Longe dos únicos adultos ativos da trama (Jim, Joyce e Murray) cabe aos jovens, mais uma vez, ter que resolver os problemas sozinhos. Aliás, é necessário falar do papel da polícia no trama – ineficiente em resolver os assassinatos que ocorrem na 4° temporada, eles ainda parecem ineficientes em evitar que suspeitos sejam perseguidos pela população.

E quem tá com a quarta temporada viva na mente pode questionar: e a dupla de agentes que salvam os jovens após uma invasão de soldados super treinados? Bom, além de mostrar uma perspectiva bem pessimista do Estado, o fato deles estarem atuando contra soldados do próprio governo torna eles os famosos “indivíduos robustos”. Esse arquétipo que advém desde o Faroeste, e que passa pelos filmes de “exército de um homem só” (Rambo, Duro de Matar ou Força em Alerta) demonstram homens que “usam a linguagem da violência” para resolver situações que o poder público não consegue (ou que é diretamente culpado).

No entanto, certamente nenhum personagem é mais emblemático nesta perspectiva desolada das autoridades do que o doutor Martin Brenner – que não à toa, ocupa uma posição dupla: de “pai” da Eleven e de funcionário de um laboratório militar. Ao transformar sua filha em uma arma de guerra, Brenner representa a desconfiança que Stranger Things tem com o Governo, com os pais e com demais figuras de autoridade.

Em um país culturalmente individualista e liberal, Stranger Things é uma fábula de como as crianças e jovens precisam confiar em si mesmo para amadurecer em um mundo em que os adultos (e o Estado) não conseguem protege-los dos males que eles mesmos causam. É o caso, inclusive, do antagonista da quarta temporada… Nesse sentido, será interessante assistir como a série vai terminar o confronto entre Eleven e Vecna – duas crianças abandonadas pelos pais e pelo Estado. Será que nossa protagonista irá perdoar e se reconciliar com o seu pai?

Descobriremos a partir de amanhã. De certeza, apenas uma coisa: que os heróis de Stranger Things continuarão podendo contar apenas com eles mesmos para salvar o mundo.

Bibliografia Citada:

JEWETT, R.; LAWRENCE J. S. The American monomyth. Garden City, NY: Anchor Press/Doubleday.1977

OLSON, Lars. Great Expectations: The Role of Myth in 1980s Films with Child Heroes. Thesis. Blacksburg: Viginia Polytechic Institute, US. 2011

McFADZEAN, Angus. Suburban Fantastic Cinema: Growing Up in the Late Twentieth Century. Wallflower Press. Columbia Univesity, NY. 2019

WETMORE JR., Kevin. (Editor) Uncovering Stranger Things: Essays on Eighties Nostalgia, Cynicism and Innocence in the Series, McFarland Company, North Carolina. 2018

[1] No original: “Self Determination Theory describes the psychological method in which a person becomes reliant upon themselves and allows internal drives to focus on the decision making process. Becoming self-reliant is a natural part of life, but there are many instances in which independence is granted too early. This early rite of passage is not due to a child being ready or deserving, but is a result of parents being incapable of providing the expected stability for their children any longer. (…) explains the rapid maturation within the characters as well as their willingness to form strong bonds, creating the CCP. These children inadvertently grasp onto self-determination  as a mode of self-defense against the lack of protection they receive from their parents”

[2] No original: “A community in a harmonious paradise is threatened by evil; normal institutions fail to contend with this threat; a selfless superhero emerges to renounce temptations and carry out the redemptive task; aided by fate, his decisive victory restores the community to its paradisiacal condition; the superhero then recedes into obscurity.”

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