Crítica de Pedro Tao
Crítica originalmente feita por Pedro quanto aluno de Cinema e Audiovisual da UFF para a disciplina de Estágio Docência II, do professor Gabriel Linhares Falcão.
Filme disponível na Amazon Prime
O Western é provavelmente o gênero cinematográfico mais americano que existe. Os outros mais famosos podem facilmente ser reproduzidos em outros países, como o terror, e outros gêneros terão argumentos contra sua própria existência, o caso do noir. Mas o Western tinha, também, uma função social importantíssima, num país em que tudo é propaganda ideológica. Mesmo que pegando alguns fatos históricos emprestados, o gênero estabeleceu uma mitologia que transcendeu as salas de cinema, sendo usadas para fomentar ideologicamente o famigerado sonho americano.
O Herói branco é implacável, articulado, rápido no gatilho, dotado de uma moralidade cristã e detentor do papel nobre e perigoso de cuidar de uma cidadezinha que cresce, como o símbolo do progresso, quase sempre é posto contra o indígena malvado, selvagem e que representa um atraso civilizatório. No meio disso, a mulher branca, que o historiador Richard Slotkin chama de “mulher redentora”, representa a civilização e suas predisposições cristãs; o casamento, a propriedade e a repressão sexual. Quando os indígenas levam as mulheres, trata-se de um sequestro da identidade auto imposta de um povo, todo o intangível que constitui aquela sociedade, os valores sendo detidos e punidos, usando somente uma interação entre dois corpos distintos.
Em dois mil e dez, a diretora Kelly Reichardt lançou seu western Meek’s Cutoff, O Atalho em português. Chama a atenção logo de cara o aspect ratio do filme, de 1.37:1, o conhecido academy ratio, implantado como o padrão pela indústria em mil novecentos e trinta e dois. Foi o formato mais comum do gênero desde o seu começo, e, por mais que não tenha tido necessariamente um fim, quando o western tentou se reinventar, foi atualizando seu aspect ratio, utilizando o widescreen, que foi visto como a separação do entretenimento que você poderia ter em casa com a tv, da experiência cinematográfica. Ironicamente, o aspect ratio talvez seja a única coisa do filme de Reichardt que remete aos antigos westerns.
Essa reinvenção é uma história à parte. Trata-se de um gênero antigo, que chegou a um ponto no qual fazer um faroeste é, também, comentar sobre faroestes em si. Na década de sessenta houve uma mudança demográfica importante: Quem frequentava os cinemas agora era uma fatia jovem e intelectual da sociedade nas grandes cidades, não mais aqueles que estavam simplesmente buscando um divertimento numa sexta à noite. Essa geração presenciou guerras e, mais do que isso, suas consequências os fizeram questionar o excepcionalismo americano, o que invariavelmente refletiu nos filmes. Monte Hellman, em sessenta e seis, filmou dois westerns (ao mesmo tempo, cortesia de Roger Corman), Disparo para Matar e Cavalgada no Vento, que já se interessavam em coisas distintas do gênero. Em Cavalgada o personagem de Jack Nicholson e mais dois amigos são presos num emaranhado de bandidos e acabam sendo lidos como um deles. Eles não possuem nomes, endereços, propósitos além da mera sobrevivência. Seres sem passado com o futuro comprometido. Em Disparo, somos colocados no meio da ação, com flashbacks que denotam o que aconteceu e uma ação desgovernada no final, sem um ponto aparente, nada no filme se dispõe a ser uma experiência narrativa, Monte se interessa pela geografia, pelos barulhos, pela capacidade de preencher um quadro tão comum os olhos dos americanos com elementos ainda não vistos por lá. Se o western era o gênero da busca pelo progresso e assentamento para tempos vindouros, Hellman o utilizava como alegoria para o presente, povoado de incertezas, sequelas e um mal-estar constante pós morte do presidente Kennedy.
Em Meek’s Cutoff, depois da percepção do formato da tela, o que chama a atenção é a vagarosidade dos planos. A diretora está interessada na banalidade da rotina. Uma tripulação atravessando o rio, lavando roupa, colocando-as para secar. Tudo que era sacado dos grandes westerns. Um gênero muito preocupado com a epicidade das cenas de ações, das letais resoluções de conflitos inflexíveis, dos papéis de gênero bem definidos (até que alguém como Nicholas Ray venha subverter isso em Johnny Guitar) e de fundamentalmente ser o primeiro gênero narrativo americano, encontra uma Kelly que possui uma ânsia contemplativa fundamentada no apreço da trivialidade, o ordinário é o que interessa.
O filme é a história de três famílias guiadas por Stephen Meek, um guia que se dispôs a orientá-los no Alto Deserto de Oregon, em mil oitocentos e quarenta e cinco. Inicialmente planejado para durar duas semanas, a desconfiança do grupo cresce quando eles perambulam há cinco, sem nenhum sinal de mudança da situação. É importante notar que a figura de Meek é o que se identifica como o outrora herói, o desbravador de uma terra sem lei que guia um povo sem um recorte geográfico para o estabelecimento de suas vidas; o mediador da relação entre o espaço ardiloso do velho oeste e o vindouro estabelecimento de cidades; o progresso.
O que Reichardt faz é descredibilizar essa figura. Se antes ela era em quem você deveria confiar para alcançar o melhoramento social, aqui ela começa a ser percebida com outros olhos, com desconfiança. O poder de decisão das figuras masculinas é colocado em xeque. Mas não de uma forma degradante, de uma forma simplesmente humana, passível de erros. Meek possui muito conhecimento, inclusive, das terras a serem desbravadas, mas depois de tanto tempo sem alcançar o objetivo, seus esforços foram deslegitimados.
O estilo contemplativo da diretora surge do retrato da trivialidade da vida errante. O tempo é dilatado porque as ações são repetitivas. O filme é uma grande andança que por vários momentos soa despropositada. Até que um indígena é encontrado.
A chegada do indígena é uma mudança muito grande de dinâmicas, mas dentro da encenação do filme, acontece de forma suave até. A ideia de Meek é matá-lo instantaneamente, e ele começa a contar todas as histórias que teria escutado sobre os nativos americanos e sua capacidade de esfolar um homem vivo. Mas ninguém deposita mais todas as fichas no guia. A ideia agora é de que, mesmo sem saber o que ele está falando, confiar no Cayuse para liderá-los até um lugar para se estabelecer. A ideia parte dos homens, mas quem sustenta e a leva até o final é Emily Tetherow.
O filme tem uma cena na qual Emily pega o sapato do indigena para reconstruí-lo, já que o Cayuse os levará aonde querem. Há uma negociação implícita entre eles, denotando um funcionamento fora das predisposições do gênero, que na maior parte do tempo coloca ambos em prateleiras sociais distintas. Kelly sabe que negócios no velho oeste só podem ser feitos com respeito mútuo, e para uma mulher e um indígena terem um tratado, eles precisam estar nivelados. Obviamente a questão do servilismo está lá, já que o indígena fora capturado, mas há o respeito da Emily, que nesse momento já tomou conta do filme, não só narrativamente, mas com uma força cênica que nenhum outro personagem chegou a ter
Um embate ideológico paira sobre o ar de Oregon. Meek com os dois pés atrás, receoso, continua com o grupo. Mas em um momento que está fumando seu cachimbo escorado numa pedra, Emily lhe diz que se ele não estiver satisfeito com as atuais condições pode simplesmente ir embora. O guia responde que onde tem derramamento de sangue, lá ele estará. Emily retruca com uma frase que resume o filme, uma frase que tira a figura do cowboy do panteão intocável dos mitos e o nivela ao mais humano dos seres: “Vaidade. É tudo que vejo.” Toda a nobreza, a moral, a magnanimidade da figura masculina dos westerns caem por terra. São apenas homens. Pior, homens vaidosos.
O mais próximo de uma cena catártica, como no mais comum dos westerns, é quando após um acidente envolvendo a carroça da tripulação, Meek, completamente impaciente, aponta uma arma para o Cayuse dizendo que daria um fim aquilo tudo. Mas o que antes era um acordo não-verbal entre as duas figuras “b” do gênero, torna-se um pacto tangível: Emily saca seu rifle e defende o atual guia do bando de forma surpreendente para quem estava presente, tanto que os planos seguintes são todos de reações dos viajantes.
O filme termina com a tripulação encontrando uma árvore e o indígena se afastando, o que muitos consideram um final aberto, sem resolução, pois não está claro se é por lá que eles se estabelecerão. Independentemente da narrativa estar fechada ou não, a ideia de que um “selvagem” seria a pedra fundamental para uma base civilizatória bancada por uma mulher sensível a questões sociais que não eram o foco do gênero outrora, que aos poucos toma conta do bando, é o suficiente para estabelecer Meek’s Cutoff como um incrível exemplo de faroeste progressista, um western desconstruído.