Hoje o aclamado Titane, dirigido por Julia Ducournau, estreia na MUBI. O filme francês ganhou a Palma de Ouro em Cannes no ano passado e assim, Julia Ducournau se tornou a segunda mulher na história a ganhar o maior prêmio do festival. Durante os 75 anos do Festival de Cannes apenas uma diretora havia sido premiada nesta categoria: Em 1993, o filme O Piano, dirigido por Jane Campion dividiu a Palma de Ouro com Adeus, Minha Concubina, de Kaige Chen.
A curadoria da MUBI fez um especial chamado Mulheres Com Suas Câmeras onde estão disponíveis 144 filmes dirigidos por cineastas. Infelizmente, a maioria dos filmes são produções europeias ou estadunidense e alguns deles não possuem legenda em português. Por exemplo, os únicos filmes produzidos no continente africano que encontrei são: B for Boy, da diretora nigeriana Chika Anadu que só possui legendas em inglês e o curta Atlantics, dirigido por Mati Diop, que é uma co-produção entre França e Senegal. Contudo, a seleção de filmes do Mulheres Com Suas Câmeras é excelente e vale a pena ser vista.
Por este motivo, fiz uma lista de 5 filmes dirigidos por mulheres para se ver na plataforma de streaming queridinha dos cinéfilos. Vale lembrar que, assim como não existe nada essencial que defina o que é ser mulher, não existe nada que defina o que é o cinema dirigido por mulheres. As obras artísticas produzidas por cineastas abordam temas variados e utilizam linguagens diferentes, não é possível unificá-las como uma coisa só. Para De Lauretis (1987), o cinema feminista não é uma categoria estética, é um processo. O cinema não só representa os gêneros sexuais, mas os constrói. É exatamente por isso que as disputas acerca das representações são fundamentais, assim, os sujeitos podem construir outros saberes sobre os corpos. Os cinco filmes escolhidos são bem variados e apresentam protagonistas distintas com dilemas diferentes. Nesta lista, optei por escolher cinco longa-metragens de diretoras estreantes (com exceção de Titane que é o segundo longa de Ducournau). Todos os filmes são produções recentes, dos últimos cinco anos, e possuem legendas em português.
Outra dica legal é a lista que a MUBI com os 10 filmes mais vistos no site no ano de 2021. Dentre eles estão as seguintes obras dirigidas por mulheres: Shiva Baby, de Emma Seligman; First Cow, de Kelly Reichardt; Dead Pigs, de Cathy Yan; Songs My Brothers Taught Me, de Chloé Zhao; e o curta-metragem Olla, de Ariane Labed. Além destes excelentes filmes, aqui está a lista com mais alguns outros:
1) Titane – Julia Ducournau (França/Bélgica, 2021)
Um acidente de carro faz com que a protagonista do segundo longa de Julia Ducournau tenha que usar uma placa de titânio na cabeça para sempre. Para Haraway (2009), as tecnologias permitiram a criação de novas identidades corpóreas onde o ser humano pode se construir de forma híbrida, transitando entre o natural e o artificial. Para a bióloga feministas, aquilo que é considerado natural, como o gênero, é construído socialmente, é uma ficção. Isso significa que nós podemos construir nossas próprias identidades. O que é considerado natural é passível de mudança. A protagonista de Titane expõe de forma muito clara a teoria presente no Manifesto do Ciborgue: seu corpo transita entre máquina e organismo, feminino e masculino.
Para Williams (1991), os gêneros do corpo, como a pornografia e o horror, são extremamente visuais. Os excessos de estímulos conectam o espectador a sensorialidade, fazendo com que o público seja afetado através do espetáculo corporal visto na tela. As explicitas cenas de violência, que podem causar repulsa, são expostas propositalmente pela jovem cineasta que vem construindo uma sólida carreira no gênero de horror. Contudo, apesar da primeira metade do filme ser extremamente violenta, ele se desenvolve de forma muito sensível. Através das suas imagens deslumbrantes e desconfortáveis, Titane conta uma história sobre amor. O horror é aqui pano de fundo para produzir um comentário sobre as violentas expectativas sociais que os papeis de gênero carregam.
A protagonista, através do corpo-máquina, cria suas próprias subjetividades, se recusando a encaixar seus desejos nas normas impostas pela sociedade. Aliás, nenhum dos personagens se encaixa completamente nos padrões estabelecidos. Até mesmo nos ambientes mais héterotop possíveis, Ducournau pincela comportamento homoeróticos. A construção da masculinidade é questionada e os personagens, quando conseguem se despir de suas performances de virilidade, são pessoas vulneráveis que se acolhem e constroem relações de carinho. É um filme silencioso. São os gestos, os olhares e os corpos que dizem tudo. Titane não ganhou o maior prêmio do Festival de Cannes por acaso, é maravilhosa a forma como Ducournau utiliza os excessos do horror para construir uma narrativa sobre identidades de gênero.
O primeiro curta de Ducournau, Junior (2011), também está presente na MUBI e vale a pena ser visto.
2) Farewell Amor – dir. Ekwa Msangi (EUA, 2020)

Farewell Amor, da diretora tanzaniana Ekwa Msangi, conta a história de um imigrante angolano que, após 17 anos separado, finalmente reencontra a esposa e a filha adolescente nos Estados Unidos. Contudo, depois de tanto tempo, eles são completos estranhos uns para os outros, é como se não se conhecessem, apesar de nutrirem um certo carinho. Eles se olham silenciosamente com curiosidade, mas perderam a intimidade tão natural de um núcleo familiar. Cada integrante da família tem seus próprios conflitos relacionados à imigração e, apesar das diferenças, eles conseguem reconstruir os vínculos, criando conexões através da paixão pela dança, que simboliza o amor pelo país que tiveram que abandonar.
A cultura, principalmente as músicas e as típicas danças angolanas, kizomba e kuduro, são a forma que os personagens tem de expressar seus sentimentos e fortalecer sua conexão pela terra natal da qual sentem saudades. A trilha sonora, repleta de músicas angolanas, é excelente e dá ao filme um tom melancólico e nostálgico. Algumas críticas analisam Farewell Amor como se ele não fosse político, já que não mostra de forma dura a difícil situação dos imigrantes. Contudo, é exatamente isso que faz com que o filme, indicado ao Grande Prêmio do Juri do Festival de Sundance, seja político. A diretora não está interessada em fazer uma obra estereotipada sobre as dificuldades dos imigrantes em um país xenofóbico. O objetivo do longa estreante de Msangi é expor os afetos de uma família de pessoas negras, o que infelizmente não é comum no cinema hegemônico. Aliás, é interessante notar como todos os personagens do filme que acolhem os protagonistas também são negros. Farewall Amor rompe com os estereótipos que foram produzidos sobre as famílias africanas, o que é muito significativo.
Vale a pena conferir a entrevista de Ekwa Msangi com John Akomfrah após os créditos finais.
3) Microhabitat – dir. Jeon Go-woon (Coréia do Sul, 2017)

Mi-so é uma jovem de 31 anos que vive em Seul e trabalha como empregada doméstica. Seu salário é gasto com aquilo que para ela é a prioridade: o aluguel, whisky, cigarros e remédios. É isso que lhe dá prazer. Entretanto, com os preços subindo, ela fica sem dinheiro e tenta pedir ajuda para seus antigos amigos da faculdade. O primeiro longa de Go-woon expõe as exclusões e desigualdades produzidas pelo sistema capitalista, onde os sonhos da juventude se transformam em ilusões e a vida vira uma grande decepção.
Os amigos de Mi-so possuem uma estabilidade financeira melhor que a dela, o que não significa que eles sejam felizes. Lembram de seu passado na faculdade com nostalgia, mas é como se isso não fosse suficiente para manter o vínculo de amizade atualmente. Eles trocaram seus sonhos por uma vida estável e a protagonista é vista como perdida, fútil por gastar dinheiro com cigarros e aproveitadora por estar pedindo ajuda. Mi-so, diferente dos amigos, não se formou porque não tinha dinheiro para pagar a faculdade, o que lhe dá poucas opções de trabalho bem remunerado. Além disso, ela se recursa a acreditar na falsa propaganda do sistema capitalista de que se você se esforçar terá dinheiro e será feliz. Ela batalha para priorizar aquilo que lhe dá prazer: whisky, cigarros e seu namorado. Por este motivo, a personagem precisa lidar com as consequências de suas escolhas de forma solitária.
4) Beginning – Dea Kulumbegashvili (Geórgia, 2020)

Após um ataque à comunidade de Testemunhas de Jeová que Yana faz parte, a esposa do líder religioso tem que lidar com uma série de agressões familiares e sociais que a fazem questionar suas escolhas de vida. A Geórgia é um país com muitos conflitos religiosos, e a diretora estreante utiliza este espaço para criar uma poderosa reflexão sobre as violências contra as mulheres, que não são colocadas em uma posição de vítimas incapazes de tomar decisões. Yana optou por se tornar Testemunha de Jeová por conta de seu marido. Ela trabalha na Igreja preparando as crianças para o batismo e realiza as tarefas domésticas de sua casa. A protagonista está em crise com as visões de mundo, se sentindo aprisionada no ambiente doméstico e nos cuidados maternos.
O grande destaque do filme é a forma como a linguagem cinematográfica é utilizada para contar a história. O ritmo lento e os planos médios e abertos nos dão tempo de refletir e absorver o cotidiano da protagonista. Os personagens falam fora de quadro e o formato de tela 1.33 : 1 limita ainda mais nossa visão. Não temos capacidade de enxergar toda a complexidade dos personagens, só podemos contemplar longamente aquilo que a diretora nos obriga a olhar, através dos longos planos estáticos que só se movem em panorâmica em momentos pontuais. Não é necessário entender perfeitamente tudo que todos os personagens fazem e preservar esse mistério é um mérito do filme. A protagonista é uma pessoa fechada e silenciosa, mas aos poucos, vamos entendendo partes de quem ela é e como as violências simbólicas e físicas a atingem. O curta-metragem de Kulumbegashvili, chamado Léthé (2016), também está disponível na MUBI.
Vale a pena conferir a entrevista de Dea Kulumbegashvili com Luca Guadagnino após os créditos finais.
5) Shiva baby – dir Emma Seligman (EUA, 2020)

O primeiro longa de Emma Seligman é sobre uma jovem que encontra seu sugar daddy em um shiva, um velório judaico. A comédia com tons de thriller, se passa todo em um único dia, e a jovem está sempre tensa com a avalanche de situações angustiantes que caem no seu colo. A protagonista Danielle é uma jovem recém-formada que decide utilizar um aplicativo de sugar baby para conseguir uma grana extra, já que não consegue emprego na sua área. Ela precisa lidar com as expectativas dos pais sobre a sua vida e com as inúmeras perguntas desconfortáveis dos familiares. Existem pouquíssimos filmes com protagonistas bissexuais no cinema, então é importante assistir essa comédia da cineasta canadense. Vale a pena conferir a entrevista com Emma Seligman após os créditos finais.
Leia a crítica completa de Shiva Baby aqui na OCA.
Bibliografia:
HARAWAY, Donna. Manifesto ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX. In: TADEU, Tomaz (org. e trad.); HARAWAY, Dona; KUNZRU, Hari. Antropologia do ciborgue : as vertigens do pós-humano. 2. ed. – Belo Horizonte : Autêntica Editora, 2009
LAURETIS, Teresa de. Technologies of gender: essays on theory, film, and fiction. Indiana: Indiana University Press, 1987.
WILLIAMS, Linda. Film Bodies: gender, genre and excess In. Film Quarterly, 44/4. Summer, 1991.