Na coluna passada, discutimos um pouco sobre o clássico natalino Esqueceram de Mim, e como ele representa um recorte da perspectiva de uma classe média-alta, branca e consumista. Hoje, iremos discutir duas de suas sequências diretas (incluindo o menos conhecido Esqueceram de Mim 3) e o novo Esqueceram de Mim no Lar, Doce Lar – que estreou na Disney+ nesse final de ano.
Você não precisa ter assistido nenhum desses filmes para ler à essa coluna. Assim como na primeira parte, nos debruçaremos sobre aspectos mais amplos de como os filmes trabalham certos temas e como isso se encaixa em uma visão hegemônica e que corrobora certos valores conservadores do capitalismo liberal. Além disso, ao trazer um filme recente para a análise, poderemos ver como estes temas são tratados de forma diferente (ou não) depois de quase 30 anos entre as produções.
Sem mais delongas, vamos lá.
Esqueceram de Mim 2: Perdido em Nova Iorque (Home Alone 2: Lost in New York, Chris Columbus, 1992)
Disponível na Disney+
Mediante o assombroso sucesso do primeiro filme (a 3ª maior bilheteria da história até então), mesmo com um orçamento enxuto, era óbvio que o estúdio se movimentaria para fazer logo uma sequência. A estratégia era bastante clara: repetir tudo que deu certo no primeiro. Não falo apenas do elenco – que incluía não apenas o jovem Macaulay Culkin e os antagonistas vividos por Joe Pesci e Daniel Stern, mas também da equipe. Ou seja, o diretor, Chris Columbus, o roteirista John Hughes, e a trilha sonora de John Williams.
Porém, talvez o aspecto mais interessante entre os dois filmes é que sua estrutura narrativa também foi mantida – mesmo diante da premissa absurda de uma família esquecer seu filho pela segunda vez. Para resolver esta questão, o filme abraça essa natureza irônica e brinca com o exagero de sua própria premissa. No entanto, a repetição de estrutura traz um grande problema para a sequência: como atrair espectadores para assistir a praticamente ao mesmo filme?
Levá-lo para outra ambientação, é claro.
Essa solução foi a mesma utilizada em franquias como De Volta para o Futuro 3 (que se passa no velho oeste), Chuck – O Boneco Assassino 3 (que se passa em uma base militar) e Jurassic Park 2: O Mundo Perdido (que se passa em San Diego). Manhattan inclusive se tornou um cenário atrativo para sequências e franquias, como é o caso de Gremlins 2 e Sexta-Feira 13 – Parte 8: Jason Ataca em Nova York.
No caso de Esqueceram de Mim 2 essa mudança de locação traz uma perspectiva interessante quanto ao seu gênero cinematográfico. Como vimos na coluna anterior, a obra faz parte do subgênero cinematográfico conhecido como suburbanismo fantástico. Nele, jovens de classe média suburbana precisam retomar a normalidade do cotidiano após uma disrupção causada por um elemento extraordinário (no caso, ladrões de residência). Por conta disso, tanto sua estrutura sintática (a narrativa do jovem que precisa defender sua casa/vizinhança) quanto semântica (o subúrbio) sofrem grandes alterações. Afinal – como fazer da cidade grande (Nova York) um local a ser defendido pelo jovem Kevin McCalister?
A solução passa por se dividir a narrativa em dois momentos bastante distintos. O primeiro em que se constrói a relação de Kevin com seu entorno. Por mais que Manhattan seja uma cidade gigantesca, aqui ela é construída a partir de ambientações bem estabelecidas e fáceis de se construir uma relação de afetividade. Uma delas é o hotel onde está o protagonista. Nele somos apresentados à sua equipe e seus hóspedes, que são construídos como se fossem prestadores de serviço e vizinhos de uma vizinhança suburbana. A outra é o Central Park, onde o personagem também encontra uma “moradora” – uma mulher em situação de rua, que repete a narrativa do primeiro filme, onde Kevin a ensinará os valores da família (falaremos mais sobre isso adiante).
A segunda parte da narrativa envolve emular exatamente a estrutura final do primeiro filme: Kevin terá que criar armadilhas em uma casa para enfrentar os (mesmos) antagonistas. Para fazer a colagem entre esses dois momentos, John Hughes criou o cenário da loja de brinquedos, cujo apelo consumista é “mitigado” pelo fato de que o estabelecimento doará parte de sua arrecadação. É justamente esse dinheiro que Kevin precisa proteger dos vilões, usando essa casa (uma mansão em reforma de um de seus parentes, conveniente localizada perto do hotel onde está hospedado) como fortaleza.
Ou seja, a gigantesca cidade de Nova Iorque se transforma em uma grande vizinhança, onde conhecemos alguns de seus personagens, sempre vinculados à certas ambientações (seja o hotel, o parque ou a loja de brinquedos) – pelas quais Kevin perambula de forma despreocupada. Tal construção além de instrumental para a trama, também auxilia em uma construção lisonjeira da cidade de Nova Iorque, que se torna um ambiente amigável apesar de seu tamanho. Sob uma perspectiva semiótica é até possível perceber essa transposição “forçada” do primeiro filme para a cidade grande no logo do segundo filme (abaixo).

Amigável também é a forma como a classe média é tratada na sequência de Esqueceram de Mim. Se este tom já era encontrado desde o primeiro filme, aqui ele é multiplicado. Isto já fica claro desde a premissa, na qual o protagonista – um jovem de classe média alta – precisa salvar a doação de uma gigantesca loja de brinquedos à um hospital que trata crianças com câncer. Os antagonistas, é claro, são homens pobres, grosseiros e mal educados que querem por as mãos sobre esse dinheiro. No entanto, o filme vai muito mais além.
Em uma cena particularmente marcante, Kevin compra um brinquedo de 23 dólares (com dinheiro “roubado” de seu pai) e, ao descobrir sobre a iniciativa da loja de brinquedo em doar dinheiro para um hospital, pega 20 dólares extras e coloca na caixinha de doações. Kevin ressalta que, diferente dos 23 dólares, o dinheiro para doação foi conseguido através de seu trabalho (tirando neve da frente da casa dos vizinhos). Isso, claro, demonstra o bom coração do personagem, que por mais que esteja se aproveitando do cartão de crédito de seu pai, doa o “fruto de seu trabalho” para crianças em necessidade. Também é um aceno à uma “coerência” entre o que eu chamo de “capitalismo atenuado” e o espírito benevolente do Natal. Em outras palavras, a classe média-alta não precisa se sentir culpada pelo seu padrão de consumo extravagante, uma vez que ela faz doações com os ganhos de seu próprio trabalho e merecimento.
Uma linha narrativa que deixa bastante clara esse “amor pela classe média” do roteirista John Hughes são os personagens aos quais Kevin ajuda a se “reconectar com a família” (a família nuclear sendo a instituição máxima da classe média suburbana). No filme original Kevin auxilia um homem rico, enquanto na sequência isso ocorre com uma mulher em situação de rua. A obra inclusive traz uma romantização da pobreza dessa personagem, ao mostrar sua felicidade em pequenos atos, como invadir um salão de música (cujo público é de classe alta) para ter “acesso” à arte. Ou seja, os filmes apontam que a classe média guarda os valores capazes de conectar tanto as classes mais ricas quanto mais pobres – cujos problemas não são econômicos ou sociais, mas puramente familiares.
Esta leitura conversa profundamente com a perspectiva do Reaganismo que discutimos na coluna anterior, mas também com a construção do que Chopra-Grant (2006, p.28) chama de um “mito jeffersoniano de democracia” onde os Estados Unidos buscaria se tornar uma sociedade sem classes, consolidada no momento em que todos tivessem acesso a propriedade privada e passassem a fazer parte da classe média. Vale ressaltar que os roteiros de Hughes são constantes em demonstrar esse olhar da classe média como exemplo dos “valores estadunidenses” que precisam ser “resgatados”.
Analisando outros dois filmes de Hughes (O Clube dos Cinco e A Garota de Rosa-Shocking) Catherine Driscoll faz uma leitura que pode contribuir para que compreendamos essa perspectiva do roteirista quantos às questões de classe. Segundo a pesquisadora, em ambos os filmes é ressaltado a alienação das classes mais altas, embora sempre demonstrando que estas podem encontrar sua redenção ao desenvolver um romance com as classes trabalhadoras brancas (2011, p.46). O encontro da classe média-alta com a classe média-baixa na escola (geralmente na high school pública), parece criar um “amálgama” da classe média que acaba por servir de solução econômica para o conflito de classes dentro do capitalismo (em outras palavras, a pobreza seria extinta conforme casamentos interclasse fossem ocorrendo). Em Filmurbia (FORREST et al., 2017, p.19) é mostrado como o romance é reparativo das mazelas de classe acaba por aproximar os filmes dos preceitos econômicos de Reagan. Uma frase que resume essa conciliação é proferida por Andie, personagem de Molly Ringwald, em A Garota Rosa-Shocking: “Se eu odiar porque ele tem dinheiro, seria o mesmo que nos odiar por não ter.”
Retornando à Esqueceram de Mim 2, é justamente por conta desta perspectiva que Hughes tem da classe média estadunidense (que representa mais da metade dos habitantes do país), que faz com que ele dê tanta importância para a “reconciliação” com seus valores. Aqui, é claro, isto se dá com a reunião da família. Quanto a isso, Hughes deixa claro que quem tem a ensinar são justamente as gerações mais novas – e cabem aos pais, afetados por problemas ligados ao carreirismo (como também ocorre em Beethoven, O Magnífico e Dennis, O Pimentinha), aprenderem com ele. Isso, inclusive, é exemplificado por uma fala da mãe de Kevin no terceiro ato do filme “Eu estaria morta por aí. Mas não Kevin. Kevin é muito mais forte e mais bravo do que eu. Eu sei que ele está bem. Mas ele merece estar com sua família”.
E se tal fala parece um tanto quanto piegas e exagerada, isto ainda é mais extrapolado no terceiro filme da franquia, como veremos a seguir.
Esqueceram de Mim 3 (Home Alone 3, Raja Gosnell, 1997)
Disponível na Disney+
O terceiro Esqueceram de Mim é o último da franquia a ser lançado no cinema, embora não repetindo seu protagonista, diretor ou compositor. A obra é também mais cara que seus antecessores, embora tenha arrecadado bem menos (cerca de 80 milhões de dólares). Claramente com a dificuldade de seguir com a franquia – cuja repetição da premissa inequivocamente faria com que ela fosse comparada com os bem sucedidos filmes de Macualay Culkin, a solução encontrada foi aumentar o grau de fantasia e “mirabolância” da narrativa. Aqui, ao invés de dois ladrões de residência, os antagonistas são uma rede criminosa de espiões e de tráfico internacional.

(Detalhe para o pôster com uma citação do crítico Roger Ebert, dizendo este se tratar melhor do que os filmes anteriores)
Quanto a isso, vale citar que McFadzean (2019) dedica um capítulo inteiro a como o capital multinacional é uma das forças que opera contra o protagonista do suburbanismo fantástico. Tal como em Short Circuit ou Pequenos Guerreiros, em Esqueceram de Mim 3 também são brinquedos que se tornam armas militares na mão de cientistas, pesquisadores e grandes empresas. Isto, por sua vez, contrapõe o grande capital ao lúdico/cotidiano, representado, é claro, por uma criança de classe média. Este olhar dicotômico entre grande capital/classe média, faz parte do discurso de Hughes, e do cinema Hollywoodiano de forma geral (principalmente dentro do suburbanismo fantástico) em valorizar o capitalismo consumista da classe média (o tal “capitalismo atenuado”) em prol de condenar grandes empresas – como se estas fossem as responsáveis pelo “mal uso” do sistema financeiro.
Esta visão fica ainda mais explicitada na trama uma vez que aqui Alex não é “esquecido”, mas precisa ficar sozinho em casa por conta do trabalho da mãe (novamente o carreirismo feminino surgindo como este grande vilão). Como diz a personagem feminina para seu empregador “Você está me colocando em uma posição entre cuidar do meu filho doente e ter dinheiro para pagar a casa”. Seu filho, no entanto, parece bastante compreensivo ao dizer para ela “Não se preocupe, não é você – são os tempos”.
E se o grande capital é responsável direto pelos problemas de Esqueceram de Mim 3 (ao deixá-lo sozinho em casa e ao colocar uma organização internacional atrás dele), são novamente as novas gerações as mais aptas à poder resgatar os valores estadunidenses da classe média. Tal como nos filmes anteriores, o amadurecimento do protagonista vem de arregaçar as mangas e enfrentar os obstáculos impostos. Mais do que isso: fazê-lo sozinho, uma vez que qualquer tentativa de tentar contar com adultos e autoridades é “recompensado” com a ironia e o descrédito. Na obra, Alex é tratado como mentiroso por sua mãe, por seus irmãos e pela polícia. Assim, resta a ele (quanto indíviduo) agir, uma vez que a sociedade ignora suas palavras. Cabe o protagonista incorporar o heroísmo e o individualismo robusto e resolver seus problemas – no maior estilo reaganista. Alex (nas palavras do roteiro de John Hughes) faz questão de deixar isto explícitos em um dos mais exagerados monólogos de toda a franquia:
“Eles vão vir atrás de mim amanhã. Ninguém vai me ouvir. Nem meus pais, nem meus irmãos. Nem a polícia, nem a força aérea. Ninguém. Então… O que eu vou fazer? Se você acha que eu devo correr, você está errada. Se você acha que eu devo lutar, você está certa. Eles vão entender quando eu tiver acabado. Eles vão entender que eu estava falando a verdade. Eu não vou chorar, ficar assustado ou triste. Eles são crescidos, são criminosos, mas essa é minha vizinhança. Essa é minha casa. E não importa o quão velhos eles sejam, o quão grandes eles sejam, eles não podem me vencer aqui. Eles não podem me vencer em casa.” (Alex em Esqueceram de Mim 3, 1997)
A música tema do filme, My Town da banda Cartoon Boyfriend, também reforça a mensagem ao trazer em sua letra a seguinte passagem:
“Essa é minha cidade
Tome cuidado se você vier por aqui
Eu acho que não te conheço
Bem… Talvez seja hora de mostrar pra você
Essa é minha casa
Estarei esperando aqui sozinho
E se você acha que também está preparado
Venha cá e toque a campainha”
(My Town – Cartoon Boyfriend)(Tradução do autor)
No fim de Esqueceram de Mim 3 o reconhecimento de que Alex esteve sempre certo é a resolução de seu processo de amadurecimento. Afinal, agora ele é validado socialmente como homem – alguém que faz o que tem que ser feito, mesmo que sozinho ou sem a ajuda das autoridades. Ao performar seu individualismo robusto, ele consegue o direito ao “reconhecimento social” na posição de jovem branco e de classe média.
Feitas tais considerações sobre as duas sequências imediatas de Esqueceram de Mim, chamo o leitor para darmos uma olhada no filme mais recente da série, lançado em Novembro de 2021 na Disney+ – para vermos como certos temas são apresentados.
Esqueceram de Mim no Lar, Doce Lar (Home Sweet Home Alone, Dan Mazer, 2021)
Disponível no Disney+
A primeira coisa que nos chama a atenção nesse novo capítulo da franquia é a forma inusitada como ela começa: somos apresentados a duas diferentes famílias. A família McKenzie, que está vendendo a sua casa e a família Mercer, cujo filho, Max, é o mais novo sucessor do personagem de Macaulin Culkin. As duas famílias se encontram em um Open House, quando a mãe de Max finge que está interessada na casa para que seu filho use o banheiro.

(Detalhe para o pôster com uma citação do crítico Roger Ebert, dizendo este se tratar melhor do que os filmes anteriores)
Quanto a isso, vale citar que McFadzean (2019) dedica um capítulo inteiro a como o capital multinacional é uma das forças que opera contra o protagonista do suburbanismo fantástico. Tal como em Short Circuit ou Pequenos Guerreiros, em Esqueceram de Mim 3 também são brinquedos que se tornam armas militares na mão de cientistas, pesquisadores e grandes empresas. Isto, por sua vez, contrapõe o grande capital ao lúdico/cotidiano, representado, é claro, por uma criança de classe média. Este olhar dicotômico entre grande capital/classe média, faz parte do discurso de Hughes e do cinema Hollywoodiano de forma geral (principalmente dentro do suburbanismo fantástico) em valorizar o capitalismo consumista da classe média (o tal “capitalismo atenuado”) em prol de condenar grandes empresas – como se estas fossem as reponsáveis pelo “mal uso” do sistema financeiro.
Esta visão fica ainda mais explicitada na trama uma vez que aqui Alex não é “esquecido”, mas precisa ficar sozinho em casa por conta do trabalho da mãe (novamente o carreirismo feminino, discutido na coluna passada, surgindo como este grande vilão). Como diz a personagem feminina para seu empregador “Você está me colocando em uma posição entre cuidar do meu filho doente e ter dinheiro para pagar a casa”. Seu filho, no entanto, parece bastante compreensivo ao dizer para ela “Não se preocupe, não é você – são os tempos”.
E se o grande capital é responsável direto pelos problemas de Esqueceram de Mim 3 (ao deixá-lo sozinho em casa e ao colocar uma organização internacional atrás dele), são novamente as novas gerações as mais aptas à poder resgatar os valores estadunidenses da classe média. Tal como nos filmes anteriores, o amadurecimento do protagonista vem de arregaçar as mangas e enfrentar os obstáculos impostos. Mais do que isso: fazê-lo sozinho, uma vez que qualquer tentativa de tentar contar com adultos e autoridades é “recompensado” com a ironia e o descrédito. Na obra, Alex é tratado como mentiroso por sua mãe, por seus irmãos e pela polícia. Assim, resta a ele (quanto indíviduo) agir, uma vez que a sociedade ignora suas palavras. Cabe o protagonista incorporar o heroísmo e o individualismo robusto e resolver seus problemas – no maior estilo reaganista. Alex (nas palavras do roteiro de John Hughes) faz questão de deixar isto explícitos em um dos mais exagerados monólogos de toda a franquia:
“Eles vão vir atrás de mim amanhã. Ninguém vai me ouvir. Nem meus pais, nem meus irmãos. Nem a polícia, nem a força aérea. Ninguém. Então… O que eu vou fazer? Se você acha que eu devo correr, você está errada. Se você acha que eu devo lutar, você está certa. Eles vão entender quando eu tiver acabado. Eles vão entender que eu estava falando a verdade. Eu não vou chorar, ficar assustado ou triste. Eles são crescidos, são criminosos, mas essa é minha vizinhança. Essa é minha casa. E não importa o quão velhos eles sejam, o quão grandes eles sejam, eles não podem me vencer aqui. Eles não podem me vencer em casa.” (Alex em Esqueceram de Mim 3, 1997)
A música tema do filme, My Town da banda Cartoon Boyfriend, também reforça a mensagem ao trazer em sua letra a seguinte passagem:
“Essa é minha cidade
Tome cuidado se você vier por aqui
Eu acho que não te conheço
Bem… Talvez seja hora de mostrar pra você
Essa é minha casa
Estarei esperando aqui sozinho
E se você acha que também está preparado
Venha cá e toque a campainha”
(My Town – Cartoon Boyfriend)(Tradução do autor)
No fim de Esqueceram de Mim 3 o reconhecimento de que Alex esteve sempre certo é a resolução de seu processo de amadurecimento. Afinal, agora ele é validado socialmente como homem – alguém que faz o que tem que ser feito, mesmo que sozinho ou sem a ajuda das autoridades. Ao performar seu individualismo robusto, ele consegue o direito ao “reconhecimento social” na posição de jovem branco e de classe média.
Feitas tais considerações sobre as duas sequências imediatas de Esqueceram de Mim, chamo o leitor para darmos uma olhada no filme mais recente da série, lançado em Novembro de 2021 na Disney+ – para vermos como certos temas são apresentados.
Esqueceram de Mim no Lar, Doce Lar (Home Sweet Home Alone, Dan Mazer, 2021)
Disponível no Disney+
A primeira coisa que nos chama a atenção nesse novo capítulo da franquia é a forma inusitada como ela começa: somos apresentados a duas diferentes famílias. A família McKenzie, que está vendendo a sua casa, e a família Mercer, cujo filho, Max, é o mais novo sucessor do personagem de Macaulin Culkin. As duas famílias se encontram em um Open House, quando a mãe de Max finge que está interessada na casa para que seu filho use o banheiro.

Após alguns desentendimentos corriqueiros Max, pintado como um garoto cínico e contestador, rouba uma boneca com defeito de fabricação do dono da casa, Jeff McKenzie. A partir daí, a trama nos apresenta o drama dos McKenzie – que não querem se desfazer de sua residência, mas que estão pressionados pela questão financeira. É dado que Jeff trabalhava no ramo de armazenamento digital, porém seu trabalho ficou obsoleto por conta do advento da tecnologia da “nuvem”, levando ao seu desemprego. Precisando do dinheiro, Jeff descobre que sua boneca com defeito de fabricação era uma raridade que valia mais do que o necessário para salvar sua casa. Ao descobrir que ela foi roubada pelo jovem Max, Jeff e sua esposa Pam, vão atrás da boneca. Em paralelo, a famosa trama de Esqueceram de Mim ocorre com Max – e o garoto fica sozinho em sua mansão, enquanto os McKenzie tentam invadi-la para pegar a boneca.
Como fica claro nessa breve descrição, Esqueceram de Mim no Lar, Doce Lar, faz uma inversão narrativa bastante chamativa em relação aos outros filmes da série. Aqui os “invasores” se tornam os protagonistas, e Max se torna uma espécie de antagonista. Não há maldade em nenhum dos lados, apenas uma série de desentendimentos e faltas de comunicação. Isto, por sua vez, deixa claro que o garoto não corre “perigo de vida” – uma constante nas outras obras da franquia.
Para além da questão narrativa, o ponto que mais chama a atenção nesse novo filme da franquia é a exacerbação de suas contradições relativas a visão que ela desenha do capitalismo. Então, se em um primeiro momento ela parece interessada em demonstrar o quão esse cenário tecnológico faz com que não demos atenção uns aos outros, em outro ela serve como um grande expositórios de novos produtos – algo que Wojcik-Andrews (2000, p.127) já havia apontado nos primeiros filmes da franquia. Aqui, temos crianças jogando video-games, usando óculos de realidade virtual, programando seus “homebots” (uma referência à Alexa), atirando com Nerf Guns…
Uma cena bastante representativa se dá quando Max, sozinho, vai até a Mercedes Benz de sua família e cai no sono enquanto assiste desenho em uma de suas TVs. Ou seja, ao mesmo tempo que demonstra uma certa frieza tecnológica, a obra faz questão de expor os acessórios e a tecnologia do veículo. Isto, por sua vez, se repete em diversos momentos da produção, que, de forma similar aos seus antecessores, parece querer demonstrar que “o verdadeiro sentido do Natal é a família” mas, que, ao mesmo tempo, não há nada errado com o consumo exagerado e desigual propiciado pelo sistema econômico. Uma verdadeira representação do “capitalismo atenuado” pelo qual a classe média se reconhece e acredita ser “a forma correta” de se usufruir de suas benesses.
Ao mesmo tempo, ao dar protagonismo a história da família McKenzie, vemos a humilhação e a tristeza pelos quais passam esses membros da classe média diante das mudanças de arranjo produtivo das grandes corporações. Ironicamente, é o papel em que não só a Disney se encaixa, mas também as plataformas de streaming – que tornaram obsoletos uma série de empregos, justamente ao colocar seu conteúdo na “nuvem”. Iris Du (2018, p.28) fala como a onda de remakes e de filmes/séries passados em décadas anteriores nos streaming, também funcionam como uma espécie de “nostalgia restaurativa” de um momento em que o digital nos deixa “perdidos” ou “sobrecarregados”. Nesse sentido, é no mínimo irônico ver uma produção da Disney+ culpar “à nuvem”, sendo que se trata de uma conjuntura contemporânea da qual ela mesmo faz parte, enquanto ela busca capitalizar em cima do apreço nostálgico da franquia.
No fim, ao resolver seu conflito a partir de um “Deus Ex Machina”, no papel de uma boneca valiosa, a obra parece fugir das reais consequências dos temas em que ela se propõe a tratar. Afinal, aqui o desemprego estrutural é resolvido com… dinheiro. Esta construção, por sua vez, parece remeter diretamente ao auge do entretenimento reganista, marcado por obras que buscavam a balança aceitável entre prazer (no sentido de ser uma antítese para os problemas mundanos) e a sensação de que – por ser prazer – não guarda relação séria com a vida real (BRITTON, 2009, p.101). Ou seja, soluções “mágicas” são dadas para problemas reais, em uma obra que se adereça à eles, mas que não se propõe a arcar com suas consequências.
Considerações
Obviamente seria exagerado e despropositado exigir que uma franquia como Esqueceram de Mim se debruçasse sobre questões mais sérias como as aqui discutidas. Ao mesmo tempo, no entanto, é impossível não reconhecer a constância da série em romantizar certos valores ou práticas de uma classe média consumista e que se debruça sobre as soluções errôneas para os próprios problemas que apresenta.
Vimos nas duas colunas como a questão do carreirismo feminino advém de uma perspectiva machista em que a culpa para o “desmembramento da família nuclear” é colocado sobre as costas da mulher. Além disso, é necessário notar os afagos que a série faz ao capitalismo consumista (ainda mais em uma série natalina) por mais que ela busque se trajar como uma franquia que quer “mostrar os verdadeiros valores do Natal”.
Isso significa que você não deve rever Esqueceram de Mim? De forma alguma. O intuito desta coluna não é vilanizar a franquia. O filme é, na minha opinião, uma das obras mais divertidas daquele período e um dos melhores filmes de Natal produzidos por Hollywood. O que procurou se fazer aqui é problematizar, criticar e apontar algumas de suas questões – colocando-o tanto na conjuntura de sua época, como trazendo também para nosso atual cenário. Acredito assim que podemos transformar o ato de assistir estes filmes em algo um pouco mais profundo – preenchendo certas lacunas deixadas pela obra, além de desenvolver alguns de seus temas.
Dito isto, encerro este texto com um desejo de excelente Ano Novo para todos os leitores do OCA-UFF. 2021 foi um ano especialmente difícil para o país como um todo, mas é a partir da renovação das energias e dos ciclos que também vem a esperança por dias melhores.
Até 2022!
Referências Bibliográficas
BRITTON, Andrew. Britton on Film: The Complete Film Criticism of Andrew Britton. Wayne State University Press, Detroit. EUA, 2009
FORREST, David; HARPER, Graeme; RAYNER, Jonathan (eds.). Filmurbia: Screening the Suburbs. Plagrave Macmilliam, UK, 2017
McFADZEAN, Angus. Suburban Fantastic Cinema: Growing Up in the Late Twentieth Century. Wallflower Press. Columbia Univesity, NY. 2019
WOJCIK-ANDREWS, Ian. Children’s Films. History, Ideology, Pedagogy, Theory. Children’s Literature and Culture volume 12 garland reference library of the humanities volume 2165. 2000